Quantcast
Channel: Filmes para Doidos
Viewing all 152 articles
Browse latest View live

SANTUÁRIO MORTAL (1968)

$
0
0

"Necronomicon"
, aquele delírio erótico que Jess Franco dirigiu em 1967, teve uma repercussão fantástica, motivada pelo lançamento do filme nos Estados Unidos com grande campanha de marketing (rebatizado "Succubus"), e também por aquele famoso comentário elogioso do grande Fritz Lang. Tudo isso deixou o diretor espanhol com a moral lá em cima. E a melhor consequência da repercussão de "Necronomicon" foi a entrada em cena de um produtor inglês chamado Harry Alan Towers e seu talão de cheques.

Towers iniciou uma breve parceria com Franco, entre 1968 e 1970, marcada por nove filmes realizados com orçamento considerável, elencos repletos de nomes famosos e lançamento garantido nos cinemas do mundo inteiro. Foi, provavelmente, a fase em que o velho Jess foi melhor produzido e distribuído, e o resultado disso pode ser visto em "Marquis de Sade's Justine" - ou SANTUÁRIO MORTAL, como a obra foi rebatizada no Brasil e alguns outros países.


O produtor inglês sonhava há anos em realizar uma adaptação do livro "Justine: Os Infortúnios da Virtude", do infame Donatien Alphonse François de Sade, conhecido apenas como Marquês de Sade.

Esta mesma obra já havia sido adaptada para o cinema em 1963, pelo francês Roger Vadim, em "Vício e Virtude" ("Le Vice et la Virtu"). A diferença é que Vadim modernizou a trama (que se passava originalmente na século 18) e ambientou-a durante a Segunda Guerra Mundial. Por coincidência, o italiano Pier Paolo Pasolini depois faria a mesma coisa com outra obra de Sade, "Saló ou 120 Dias de Sodoma", em 1975.

Capa da edição "ampliada" de "Justine", publicada em 1791.

Depois de assistir uma exibição de "Necronomicon", Towers acreditava que Jess Franco era a pessoa mais indicada para tirar o projeto do papel - e por um valor bem abaixo do preço do mercado, digamos. Jess conhecia bem a obra do Marquês e inclusive já a havia citado em filmes anteriores (principalmente "O Sádico Barão Von Klaus" e o próprio "Necronomicon").

Em SANTUÁRIO MORTAL, Jess teria não apenas um orçamento de aproximadamente US$ 1 milhão (soma bastante considerável na época, e um dos melhores orçamentos que ele teve na vida inteira), mas também a oportunidade de trabalhar com atores famosos como Klaus Kinski e Jack Palance. Como recusar?


Infelizmente, ter um produtor que assina cheques polpudos geralmente também representa imposições ao diretor. E não foi diferente em SANTUÁRIO MORTAL: Franco queria Rosemary Dexter ("Por uns Dólares a Mais") para o papel principal de Justine, a virginal garota recém-saída do convento que passa por uma traumática odisseia de medo e dor no livro do Marquês de Sade; Towers, por outro lado, acreditava no potencial de Romina Power, uma jovem que, como atriz, era bem medíocre, mas tinha um sobrenome e um pai famoso - ninguém menos que o galã das antigas Tyrone Power! E foi assim que o pobre Jess viu-se obrigado a trabalhar com uma atriz que não queria e com quem não simpatizou desde o primeiro dia...


"Justine: Os Infortúnios da Virtude" foi escrito por Sade em 1787, enquanto ele estava preso. Esta primeira edição tinha pouco menos de 200 páginas e era até bem leve, considerando outros trabalhos do Marquês. Quatro anos depois (em 1791), Sade lançou uma edição "revista e ampliada" da obra, muito mais gráfica nos relatos de sexo e brutalidade.

Foi esta versão que ficou famosa e foi publicada, provocando enorme polêmica: Napoleão Bonaparte, então imperador da França, ordenou a prisão do autor (o que manteve Sade na cadeia pelos próximos 13 anos, e até a sua morte), e declarou que "Justine" era "o livro mais abominável já escrito". A destruição da obra chegou a ser ordenada pela corte francesa em 1815, mas algumas edições "piratas" sobreviveram.


O livro conta a história da jovem Justine desde a sua saída do convento, aos 12 anos, até sua morte prematura aos 26. Durante todo esse tempo, a garota tenta seguir uma vida "direita" e só se dá mal, passando pelas mais terríveis provações em sua busca pela virtude.

No final, ela reencontra a própria irmã, Juliette, promovida a aristocrata por ter feito justamente o caminho inverso - o do vício e do crime. Logo, a "moral" da história é bem clara e pode ser aplicada até hoje: quem é bonzinho só se fode! Ou, nas palavras do Marquês, "está escrito que as atribuições e as dores devem ser o terrível atributo da virtude. Mas enquanto a recompensa da virtude é a desgraça e a infelicidade, o caminho do vício conduz à felicidade e à prosperidade". 


Enfim, um prato cheio para Jess Franco, não é mesmo? Principalmente considerando que o diretor colhia os louros de seu "Necronomicon", um trabalho repleto de cenas "delicadas" envolvendo sexo, lesbianismo e até sadomasoquismo, além de uma "moral" bastante duvidosa para a época...

Por isso, é surpreendente constatar como SANTUÁRIO MORTALé um dos trabalhos mais convencionais de Franco. Mesmo adaptando uma obra maldita de um autor maldito, ele parece dirigir o filme com o freio-de-mão puxado, sempre se segurando para mostrar o mínimo possível de sexo, violência e perversão. O resultado é uma obra grandiosa, provavelmente a mais "hollywoodiana" que Jess já fez, mas ao mesmo tempo aquém do potencial do diretor e do material.


O filme começa com o Marquês de Sade (Klaus Kinski, quem mais?) sendo levado para a prisão. Já dentro da sua cela, ele começa a ser assombrado por fantasmas e delírios envolvendo garotas nuas sendo torturadas. Inspirado por essas visões (nunca fica claro se o autor vivenciou essas situações ou se são apenas criações da sua mente distorcida), o Marquês se senta a uma mesa e começa a escrever o que viria a ser "Justine: Os Infortúnios da Virtude".

Aí a história do livro é narrada como se Sade estivesse contando ao mesmo tempo em que escreve. E tanto o Marquês quanto Klaus Kinski saem de cena. (Alguns takes do autor escrevendo aparecem mais tarde ao longo da narrativa e na conclusão, mas nada acrescentam.)


Na trama do livro "Justine", estamos em plena França do século 18 (mas as cenas foram filmadas na Espanha). As jovens irmãs Justine (Romina Power) e Juliette (a austríaca Maria Rohm, então esposa do produtor Towers), que vivem num convento desde a tenra ridade, recebem a notícia de que sua mãe faleceu e seu pai acabou de fugir do país deixando várias dívidas para trás. Em resumo, o dinheiro acabou e elas precisam picar a mula do convento!

Abandonadas pela primeira vez ao próprio destino nas ruas de Paris, elas demonstram comportamentos opostos: enquanto Justine é ingênua e acredita que precisa continuar sendo uma pessoa boa, seguindo os ensinamentos aprendidos no convento, Juliette é mais cínica e consciente da "vida real", e resolve imediatamente procurar emprego no bordel de Madame De Buisson (Carmen de Lirio).


Justine condena a irmã por abandonar tão rapidamente o caminho da virtude e a abandona. Mas, ao dobrar a primeira esquina da cidade sozinha, tem suas únicas economias roubadas (por um padre!!!), e precisa trabalhar como empregada doméstica numa pousada de quinta categoria para garantir pelo menos um teto e uma cama para dormir!

A partir daqui, SANTUÁRIO MORTAL assume uma narrativa episódica para mostrar as desventuras da pobre Justine. Até mesmo as roupas de luxo que a menina vestia são vendidas pelo dono da pousada onde passa a morar/trabalhar, e a única coisa que lhe resta no mundo é a sua "virtude" - que será colocada à prova pelo restante do filme.


Entre outras complicações, Justine é acusada de um roubo que não cometeu, é presa e depois foge com a ajuda de uma famosa ladra (Madame Dubois, interpretada pela vencedora do Oscar Mercedes McCambridge, mais conhecida como "a voz do demônio" no filme "O Exorcista"). Mais tarde, ela se envolve com o afetado Marquês de Bressac (Horst Frank), que planeja matar a esposa rica (a linda Sylvia Koscina) para ficar com sua fortuna e seu amante. Finalmente, Justine é obrigada a fugir, acusada de um assassinato que também não cometeu, e busca refúgio num velho santuário, onde espera recolher-se em paz e oração, sem saber que o lugar é habitado por monges devassos liderados pelo Irmão Antonin (Jack Palance!!!).


Este é, disparado, o grande momento do filme, justificando o título nacional (e um dos vários títulos alternativos estrangeiros, "Deadly Sanctuary"). Também é a parte que mais lembra os trabalhos anteriores (e posteriores) de Franco. O espectador descobre que os monges (entre eles Howard Vernon, o eterno Dr. Orloff) estão em busca do "prazer supremo", e, num momento típico tanto das obras de Sade quanto das de Franco, Justine é iniciada num mundo de sexo e perversão, sofrendo uma série de torturas e abusos pelas mãos dos "homens santos"!

Enquanto isso, um Jack Palance completamente bêbado (algo que é visível mesmo pelo mais desligado dos espectadores) fica dando desconexos discursos sobre crime e virtude, não poucas vezes esquecendo o texto no meio, e sempre rodeado de mulheres nuas. Ele deve ter improvisado boa parte desses discursos em meio aos seus delírios de embriaguez, num momento hilário e inesquecível!


Ao mesmo tempo em que Justine só se dá mal, SANTUÁRIO MORTAL também nos mostra a vida boa de sua irmã Juliette, que de prostituta de luxo acaba se tornando assassina e milionária (ela mata um nobre frequentador do puteiro para roubar seu dinheiro, e depois mata também a cúmplice e amante que lhe ajudou a cometer o crime, para não precisar dividir a fortuna).

Na conclusão, assim como acontecia no livro do Marquês, Justine e Juliette se reencontram e a garota certinha que foi abusada durante o filme inteiro pode constatar como sua irmã se deu bem seguindo o caminho "errado". Porém, ao contrário do que acontecia no livro, Justine não é morta instantaneamente por um raio (!!!), recebendo o alívio de um "final feliz" - se bem que, considerando a onda de azar que sofreu durante o filme, eu não acredito que ela vai resistir muito mais depois dos créditos finais!

A última cena de SANTUÁRIO MORTAL mostra o Marquês Kinski colocando o ponto final em seu novo livro, agora concluído.


Vendo o filme hoje, é perfeitamente compreensível o ódio que Jess nutria pela estrelinha imposta por seu produtor, Romina Power, que estava com 17 anos na época das filmagens. Primeiro porque o roteiro teve que ser substancialmente alterado para encaixar a atriz, e depois porque ela é péssima e em nenhum momento consegue fazer com que o espectador se compadeça do seu sofrimento.

Pelo contrário: Romina é tão xarope e insuportável que é mais fácil você torcer para ela tomar pancada o filme inteiro! Isso porque a atriz jamais consegue passar a impressão de uma menina ingênua e inocente, e transforma sua Justine numa completa estúpida. E, para piorar, ela aparece em 99% do filme! Curiosamente, o próprio Franco faz uma ponta (usando turbante!!!) como apresentador de um espetáculo erótico, que exibe Justine/Romina completamente nua ao público. Sabendo da relação de ódio do diretor com sua estrela, esta cena hoje assume um tom até irônico.


"Ela era como uma peça de mobília, você só podia pegá-la e colocá-la em outro lugar, ou dizer para ela olhar para tal lado de tal jeito", disse o diretor, sobre Romina, numa entrevista que faz parte dos extras do DVD norte-americano de SANTUÁRIO MORTAL. "Era como se ela estivesse passeando pelo set e estivéssemos filmando 'Bambi 2'. Na maior parte do tempo, ela nem sabia que estávamos gravando. O filme seria muito melhor com Rosemary Dexter no papel".

Hoje pode até soar curioso que a filha de um astro do calibre de Tyrone Power termine peladinha numa produção sexploitation dirigida por um sujeito como Jess Franco. Afinal, o que mais se vê são filhos de gente famosa dando carteiraço para já estrear com o pé direito no cinema (nem que seja para comprovar o quanto são medíocres).


Mas, no passado, filhos de astros geralmente tinham que ralar e mostrar serviço, o que explica como a pobre Romina foi terminar aqui. Um outro exemplo de filho nem tão famoso de astro famoso que trabalhou com Jess foi Christopher Mitchum, o herdeiro de Robert Mitchum, que nunca conseguiu subir para a primeira divisão e acabou eternamente ligado ao cinema classe B (às vezes até Z!), incluindo "Sem Face", dirigido por Franco nos anos 1980.

Já a pobre Romina - que filmou suas cenas em SANTUÁRIO MORTAL sempre acompanhada pela mãe super-protetora - não foi muito longe na "carreira" e praticamente abandonou o cinema (ufa!) no começo da década de 70 para formar uma popular dupla musical com o ex-marido Albano; eles tiveram uma bem-sucedida carreira cantando música popular italiana, que só acabou com o divórcio dos dois. Romina voltou para os EUA e, em 2007, voltou ao cinema fazendo uma ponta me "Go Go Tales", de Abel Ferrara!


Para os fãs mais hardcore da obra de Franco, um problema grave deste filme é não trazer a quantidade de sexo e violência que se espera de uma história do Marquês de Sade filmada por Jess. Até há uma quantidade generosa de mulheres nuas nas duas horas de projeção, mas é uma história que fala o tempo inteiro sobre sexo sem que atos sexuais sejam mostrados (algo como um filme erótico sem erotismo, em outras palavras).

Na entrevista do DVD gringo de SANTUÁRIO MORTAL, o diretor concorda que a adaptação do livro para o cinema foi suavizada em vários pontos, mas que mesmo assim muita coisa vista no filme era bem forte quase 50 anos atrás, na época das filmagens. O próprio produtor Towers assinou o roteiro, usando o pseudônimo Peter Welbeck.


Um exemplo de como a versão para o cinema foi "suavizada": no livro de Sade, Justine perdia sua virgindade à força, sendo estuprada de forma brutal numa das orgias dos monges doidões. Além disso, a garota passava anos aprisionada no tal santuário sofrendo abusos, até ser libertada com as outras prisioneiras graças à chegada de novos padres.

Tudo isso foi mostrado de maneira menos impactante no filme, onde Justine é "apenas" torturada pelos monges, mas aparentemente escapa com a virgindade intacta. E seu período de sofrimento no local dura no máximo algumas semanas, até que, numa reviravolta moralista, o "santuário mortal"é destruído por um raio (!!!), como se fosse a justiça divina desabando sobre aqueles religiosos devassos!


A quantidade de violência (e a forma como esses atos são representados) também pode frustrar o espectador, ainda mais pelo fato de o filme ter ganhado fama de censurado e proibido na época do seu lançamento.

Um dos poucos momentos mais fortes, em matéria de tortura e sadismo, é a cena em que Justine é marcada com um "M" no peito (para identificá-la como assassina, com o M de "murderer"), e isso é feito com um ferro em brasa, num efeito até bem eficiente.


Porém a Justine de SANTUÁRIO MORTAL não sofre 5% dos abusos físicos que a Justine do livro do Marquês de Sade - que, em determinado trecho, era chicotadas nos seios até ficar com eles em carne viva! -, e termina o filme mais como uma inocente falsamente acusada de cometer crimes do que como uma inocente que sofreu todo tipo de abuso físico e sexual ao longo da história, como a protagonista do livro.

Até porque a insuportável Romina Power apanha bem menos do que deveria pela sua interpretação irritante, e uma das únicas "torturas" a que é submetida envolve a aplicação de agulhas nas suas costas (abaixo) pela bonitona Rosalba Neri ("99 Mulheres"), que depois lambe o sangue saído dos ferimentos. Mas poxa, o máximo de sadismo em que conseguiram pensar foi colocar agulhas nas costas de alguém? Isso é acupuntura, e até faz bem para a saúde!


Assim, se há um excelente motivo para ver SANTUÁRIO MORTAL, este se chama Jack Palance. Sua performance sob efeito etílico é aquele tipo de coisa que fica na tênua linha entre genialidade e vergonha alheia. Há um momento fantástico em que seu Irmão Antonin "desliza" pelo cenário, como se estivesse flutuando, que eu sempre imagino que só está no filme porque Palance não conseguia caminhar, de tão mamado!

"Jack Palance estava bêbado o tempo inteiro", confirmou Franco, na entrevista do DVD norte-americano."Quando chegou no set, ele tinha medo que eu o colocasse para fazer algo vulgar. Então começava a tomar vinho tinto às sete da manhã! Mas como ator era soberbo, e completamente insano, eu tinha que controlá-lo e mandá-lo parar". 


Outro momento mágico do filme que também fica no limite entre genialidade e vergonha alheia é a participação do malucão Klaus Kinski como Marquês de Sade. Foi seu primeiro trabalho num filme de Franco, mas ele não era a primeira opção: o produtor Towers queria Orson Welles, que inclusive era amigo de Jess e trabalhou com ele anos antes. Infelizmente, Welles se recusou porque não queria participar de um filme com cenas eróticas.

Aí Kinski entrou na jogada, mas estava com bastante moral na época por causa de suas participações em westerns produzidos na Itália - e, consequentemente, seu cachê tinha inflacionado. Para economizar, Towers contratou o alemão por apenas dois dias; num deles, Franco filmou as externas do Marquês sendo levado para a prisão, e no outro as cenas com Sade dentro da cela.


Klaus ganhou seu nome em destaque nos créditos, mas suas cenas como o Marquês de Sade não somam nem cinco dos 124 minutos do filme! E isso sem dizer uma única frase: ele aparece apenas andando de um lado para o outro no interior da cela e fazendo caretas!

Sabendo da fama de "difícil" do ator, Franco resolveu gravar estas cenas a sós com Kinski. "Pedi para o diretor de fotografia deixar a iluminação preparada nos pontos que iríamos filmar, e depois ele saiu e fiquei sozinho com Klaus. Trabalhamos o dia inteiro, sem comer. E ficou ótimo", opinou Jess, na entrevista para o DVD importado.


Na verdade, estas cenas destoam completamente do clima e do visual do restante do filme, e percebe-se claramente que são takes filmados dentro do já célebre "estilo Franquiano de direção": o ator fica perambulando pela sua cela sem rumo e sem direção, enquanto a câmera de Jess o segue de um lado para outro, dando super-zooms até sair do foco!

Muitos desses takes estão bem ruins (o ator fica fora do enquadramento, ou completamente fora de foco), e poderiam ter sido descartados na montagem sem que nada se perdesse. Mas, pelo jeito, a ordem era dar destaque para o tempo de Kinski no filme, pelo que ele custou ao produtor. E aí...


Que fique claro que eu não desgosto de SANTUÁRIO MORTAL, e inclusive acho um dos bons trabalhos desta fase da carreira de Jess. Mas o filme pode ser frustrante para quem espera algo no estilo pelo qual o diretor é mais conhecido. Eu até diria que este é um dos seus trabalhos mais acessíveis ao "grande público", sem tanta sacanagem e/ou maluquices, e pode ser encarado tranquilamente como um (quase) inofensivo drama/romance de época, no estilo de "As Aventuras de Tom Jones".

Essa impressão é reforçada pela produção de ótimo nível, que usa e abusa de cenários grandiosos (o exagerado Franco disse que foram usados mais de 100 sets!), belíssimos figurinos que realmente lembram roupas de época (ao contrário do que veríamos depois em filmes da fase "orçamento zero" de Jess), e até multidões de figurantes - um diferencial para um diretor acostumado a trabalhar com equipes reduzidas e poucos recursos.


Diversos prédios históricos espanhóis foram utilizados para cenários marcantes da história. O destaque vai para a curiosa casa do pintor Raymond (Harald Leipnitz), que é uma construção projetada pelo famoso Antoni Gaudí no Parc Güell (abaixo), em Barcelona. Devido ao teor do filme, e ao fato de a Espanha estar em plena ditadura do General Franco, os realizadores tinham que tomar muito cuidado na hora das filmagens - Jess até comenta, na entrevista para o DVD, que estaria preso até hoje se soubessem que ele estava rodando um filme baseado em obra do Marquês de Sade na Espanha sob ditadura franquista!

Já a trilha sonora foi assinada pelo italiano Bruno Nicolai. A parte mais lembrada é a música sinistra que toca nas cenas com o Marquês de Sade, e que parece mais exagerada e sombria do que o momento exige. Franco reaproveitou esta peça no posterior "Dracula Contra Frankenstein", com resultado bem melhor!


Durante um bom tempo, SANTUÁRIO MORTAL foi um dos poucos trabalhos de Franco disponíveis em vídeo no Brasil, junto com "Manhunter - O Sequestro", "Sadomania" e "Conde Drácula". Muita gente teve o seu primeiro contato com a numerosa fimografia do diretor graças a este filme, que foi lançado pela Transvídeo com uma capinha (veja no final desta resenha) que ressaltava o lado "polêmico" da obra, usando chamadas tipo "Chocante e controvertido", "Proibido na Europa"e "Nunca visto antes na América do Norte"!

Esta versão lançada no Brasil não era a "director's cut", e sim uma versão com 93 minutos (quase meia hora a menos!) lançada em alguns países da Europa e nos Estados Unidos. Apesar do que pode parecer, os cortes não foram nas cenas de sacanagem ou tortura, mas sim em todas aquelas partes que estão sobrando - e, convenhamos, a duração de 124 minutos é um exagero!


Entre as cenas podadas no versão de 93 minutos estão aquela em que as prisioneiras dançam no pátio da cadeia antes da fuga e uma tentativa de estupro de Justine pelos homens da quadrilha de Madame Dubois (que não dá em nada); outras cenas foram diminuídas, mas sem que se perdesse muita coisa.

Para quem conheceu o filme pela versão lançada pela Transvídeo, é essencial revê-lo agora em DVD, numa cópia boa e finalmente completa. Não tanto pelas cenas a mais, que não acrescentam nada de tão substancial; mas sim para finalmente ver a exuberante fotografia de Manuel Merino do jeito certo. Algumas cenas são realmente lindas, com iluminação em tons de vermelho e púrpura incidindo sobre os personagens, coisa que a cópia lavada dos tempos do VHS não permitia apreciar.


SANTUÁRIO MORTAL foi a primeira, mas não a única incursão de Jess Franco no universo literário do Marquês de Sade: ele depois dirigiu "Eugenie e o Caminho da Perversão", "Eugénie de Sade" e "Eugenie, Historia de una Perversión" (os três baseados na personagem do livro "A Filosofia da Alcova") e "Plaisir à Trois" e "Sínfonia Erótica" (baseados no episódio de "Justine" envolvendo o Marquês de Bressac e seu plano para matar a esposa).

Enquanto isso, outros realizadores trataram de fazer suas próprias versões da dramática aventura de Justine em busca da virtude: além daquela primeira adaptação de Roger Vadim, em 1963, também saíram "Justine de Sade" (1972), do francês Claude Pierson, com a bela Alice Arno interpretando tanto a irmã boazinha quanto a "malvada"; o pornô "Justine & Juliette" (1975), de Mac Ahlberh, e o lisérgico "Cruel Passion" (1977), de Chris Boger.


Se você não gostou dos filmes de Jess Franco que viu por achá-los mal-filmados, desconexos ou muito baratos e vagabundos, SANTUÁRIO MORTAL pode ser encarado como uma rara exceção na filmografia do diretor: trata-se de uma produção requintada, ambiciosa e muito bem acabada (com exceção, talvez, das cenas com Kinski como o Marquês, que são puro Franco). Também tem ótimos atores, e não apela para as maluquices e improvisos tradicionais do diretor.

Já para quem conhece o "verdadeiro" Franco, e gosta dos seus improvisos e até das barbeiragens que ele volta-e-meia comete, SANTUÁRIO MORTAL parecerá algo bem diferente, e isso justamente por ser muito "certinho". É um trabalho até meio impessoal, em que raríssimas vezes podemos reconhecer seu estilo característico.

O que, novamente, não quer dizer que seja um filme ruim. Em outras palavras, isso aqui foi o mais perto que Franco chegou do "mainstream". Para o bem ou para o mal...


Capa do VHS brasileiro de "Santuário Mortal"


*******************************************************
Marquis de Sade's Justine / Deadly Sanctuary
(1968, Inglaterra/Alemanha/Itália)

Direção: Jess Franco
Elenco: Romina Power, Jack Palance, Klaus Kinski,
Maria Rohm, Howard Vernon, Sylvia Koscina, Horst
Frank, Mercedes McCambridge e Rosalba Neri.

MACUMBA SEXUAL (1981)

$
0
0

Uma maneira bem simples de definir MACUMBA SEXUAL seria compará-lo ao clássico "Vampyros Lesbos" (1970), com a transsexual Ajita Wilson no lugar da musa Soledad Miranda, e feitiçaria no lugar do vampirismo. Mas, por mais correta que seja, esta definição não faz justiça ao filme - um dos trabalhos mais enigmáticos dirigidos por Jess Franco nos anos 1980, e infelizmente prejudicado pela insistência de travar a narrativa a cada cinco minutos para mostrar cenas de sexo no limite do explícito.

MACUMBA SEXUAL foi filmado nas Ilhas Canárias (Espanha), um dos cenários preferidos do diretor na época, pois a geografia local lhe permitia imitar diversas partes do mundo sem a necessidade de gastar dinheiro indo até elas, do Deserto do Saara (em "Oásis dos Zumbis") a Hong-Kong (em "La Sombra del Judoka Contra el Doctor Wong").

Trata-se de mais uma produção da Golden Films, aquela pequena empresa espanhola que deu a Jess liberdade total para filmar o que quisesse, desde que custasse bem pouco - neste filme em específico, há apenas cinco atores e outras três pessoas na equipe técnica além do próprio Franco!


Franco e uma pequena equipe foram para as Ilhas Canárias em 1981 rodar dois filmes back-to-back, reaproveitando inclusive alguns dos mesmos atores. MACUMBA SEXUAL foi filmado antes (embora tenha sido lançado apenas em 1983, segundo o nem sempre confiável IMDB), e logo depois o diretor fez "La Mansión de los Muertos Vivientes".

Estes dois trabalhos são bem parecidos, e não apenas por causa da locação e dos atores repetidos: ambos jogam elementos de horror (mortos-vivos lá, vodu aqui) numa narrativa típica de filme pornográfico, em que tudo o que acontece é apenas para justificar a próxima trepada, ou a próxima cena em que alguém aparece pelado.


Se em "Vampyros Lesbos" a loiraça Ewa Strömberg estava sendo assombrada por pesadelos recorrentes estrelando a Condessa Nadine Carody (uma vampira interpretada por Soledad Miranda), aqui é a corretora de imóveis Alice Brooks que está sendo visitada, nos seus pesadelos, por uma misteriosa feiticeira vodu (Ajita Wilson) que aparece sempre em meio às dunas, levando dois "escravos" andando de quatro e com coleiras no pescoço, como se fossem feras selvagens. Às vezes, nesses sonhos, Alice também vê esta mulher desfalecida na areia, com um misterioso ídolo (que lembra um pato mumificado, mas com uma vistosa ereção!) cobrindo sua genitália.


A "heroína"é interpretada pela musa e esposa do diretor Lina Romay, aqui "disfarçada" com sua tradicional peruca chanel loira e usando o pseudônimo "Candy Coster". Ela está de férias em Bahía Feliz, uma das ilhas das Canárias, com o marido novelista Peter (Antonio Mayans, creditado como "Robert Foster", as usual). Ele está preparando seu novo livro e precisa de paz e tranquilidade, embora invista mais tempo transando com a esposa tarada do que escrevendo!

Mas o clima romântico é interrompido pelo telefonema do patrão de Alice, que pede que ela vá discutir os detalhes da venda de uma propriedade em Atlantic City com uma cliente em potencial, a Princesa Tara Obongo, que vive reclusa numa ilha próxima. Com a promessa de uma grande comissão caso feche o negócio, a garota se manda no primeiro barco rumo à casa da compradora.


A exemplo do que aconteceu com Ewa Strömberg em "Vampyros Lesbos", Alice logo descobrirá que sua futura cliente é justamente a mulher que estão aparecendo nos seus sonhos/pesadelos recorrentes! Pior: a Princesa Obongo é uma sacerdotisa vodu que atrai suas vítimas até a ilha e as domina, transformando-as em escravas sexuais.

Depois de ser seduzida pela mulher e participar de um autêntico gang-bang com a princesa e seus dois escravos de coleira, a jovem acorda no dia seguinte e encontra sua anfitriã "morta", deitada na areia com aquele misterioso ídolo entre as pernas, como acontecia nos seus pesadelos. Apavorada, Alice foge e volta para perto do marido, mas já é tarde demais: Peter também está sob o poder hipnótico da princesa!


E o que a macumba tem a ver com a história, afinal?

Bom, para começo de conversa, os rituais filmados por Franco em MACUMBA SEXUAL têm pouco ou nada a ver com macumba, e lembram muito mais o vodu (que o diretor já havia enfocado no fraquinho "Voodoo Passion", de 1977). A Princesa Obongo vive rodeada de ídolos africanos que, segundo Jess, foram comprados de imigrantes senegaleses que viviam nas Ilhas Canárias.

O título inicial do filme era apenas "Macumba", mas o "Sexual" foi adicionado pelo distribuidor posteriormente para "agregar valor"à produção, mais ou menos como aconteceu com muitos filmes brasileiros realizados entre as décadas de 70 e 80 (que ganhavam títulos "pornográficos" para atrair mais espectadores).


É possível que a referência à macumba seja apenas uma citação a um filme de 1960 chamado "Macumba Love" (exibido nos cinemas brasileiros como "Mistério na Ilha de Vênus"), uma co-produção classe B entre EUA e Brasil, que foi dirigida por Douglas Fowley aqui no país! As histórias dos dois filmes inclusive têm semelhanças: em "Macumba Love" também há uma sacerdotisa vodu aprontando altas confusões com um casal em lua-de-mel.

O próprio Franco se atrapalha ao tentar explicar o que é macumba numa entrevista que faz parte dos extras do DVD importado do filme, confirmando que não entendia bulhufas da coisa e deve ter se inspirado no infame "Macumba Love", criando bizarros rituais saídos da sua cachola, como o curioso momento envolvendo um ídolo de marfim que é desenterrado do meio do deserto (e o formato fálico do negócio já dá uma bela ideia de para quê exatamente ele será utilizado mais tarde...).


A exemplo de "La Mansión de los Muertos Vivientes", e de outros filmes que o diretor começou a fazer ainda nos anos 1970, MACUMBA SEXUAL tem 15 minutos de história e 60 de sexo e safadeza.

Lina Romay, como de costume, aparece pelada frente e verso quase que o filme inteiro, e é até estranho vê-la VESTIDA em algumas poucas cenas. A cada 10 minutos, Franco dá um jeito de encaixar uma cena de sexo ou pelo menos de exibição gratuita das formas da sua estrelinha - que, quando não está transando com o marido, está sendo abusada pela Princesa Obongo e seus escravos.


Parece ser uma vingança do diretor contra a censura espanhola, que o manteve afastado do seu país-natal por quase 20 anos. Com a morte do General Francisco Franco e o fim da ditadura (em 1975), o cinema produzido no país pôde escancarar tudo aquilo que antes era proibido, e Jess levou isso ao pé da letra.

Inclusive falta muito pouco para MACUMBA SEXUAL entrar no território do pornô explícito, e algumas cenas rápidas ficam no limite do X-Rated - como quando Ajita Wilson enfia um dedo em certo orifício corporal de Lina Romay, ou quando o tal ídolo de marfim com formato fálico é parcialmente enfiado na vagina da própria Ajita!


O problema é que, passado o impacto inicial de vermos Lina Romay sempre pelada e transando avidamente com homens e mulheres (pense em alguém que gosta do que faz), MACUMBA SEXUAL começa a se tornar repetitivo. E como a história tinha bastante potencial, o espectador só pode lamentar que a narrativa não avance apenas porque Franco precisa cortar para mais uma cena de putaria ou de mulher pelada.

Parece até um disco de vinil riscado que fica tocando sempre a mesma música: talvez existam faixas bem melhores depois, mas você não tem acesso a elas e precisa ficar preso naquele repeteco. Da mesma forma, há ideias bem legais no filme que o diretor não se preocupa em desenvolver, preferindo ficar na zona de conforto da sacanagem seguida de mais sacanagem.


É uma pena, porque o filme ficaria bem melhor se investisse mais nos elementos de horror. Em alguns momentos, quando quer, Franco até consegue criar um clima genuinamente arrepiante.

Tal qual uma Freddy Krueger dos pobres (mas criada três anos ANTES que o personagem de Wes Craven), a Princesa Obongo fica assombrando Alice nos momentos mais inesperados, de maneira que o próprio espectador começa a ficar perdido entre pesadelo e realidade: numa hora ela está transando com o marido, e no minuto seguinte Peter é substituído pela"macumbeira"; numa hora Alice está se masturbando, e no minuto seguinte a princesa aparece magicamente tocando as partes da garota, e por aí vai. Ou seja, a personagem de Ajita Wilson é uma daquelas ameaças onipresentes e onipotentes, o que me lembrou filmes bem melhores sobre feitiçaria, como o assustador "Adoradores do Diabo" (1987), de John Schlesinger.


Além disso, os estranhos rituais realizados pela sacerdotisa - como quando ela usa o tal ídolo com formato fálico no bizarro "ritual de iniciação" de Alice - passam aquela sensação de que não há para onde fugir, e de que o casal de protagonistas não tem saída contra a poderosa magia da feiticeira. Como o já citado Freddy, ela está sempre no controle daquele mundo de delírios e pesadelos, onde os pobres mortais não têm vez.

E tem também aquela esquisitíssima criatura em forma de pato mumificado, que fica no limite entre o tosco e o inquietante. Suas repetidas aparições durante o filme ajudam a criar um clima de horror bem particular, uma coisa bem de pesadelo filmado. Só que ai começa a fodelança e...


Na resenha de "La Mansión de los Muertos Vivientes", eu comentei que Jess pode ter sido bastante influenciado por "O Iluminado" ao rodar estes dois filmes de horror ao mesmo tempo, já que lá havia um hotel isolado e abandonado assombrado por possíveis fantasmas, tipo um Overlook Hotel dos pobres.

Pois aqui em MACUMBA SEXUAL há uma cena que ajuda a confirmar a inspiração, quando o personagem de Mayans, sob efeito da magia da princesa, datilografa uma página inteira com seu nome, "Tara" - mais ou menos como o antológico "Só trabalho sem diversão faz de Jack um bobão", de "O Iluminado".


MACUMBA SEXUAL termina com aquele final circular que os italianos adoravam fazer, em que a falsa ilusão de segurança logo dá lugar ao reinício do pesadelo. E funciona. Por isso eu insisto que Franco poderia ter feito um belíssimo filme de horror, se não estivesse tão preocupado em fechar a cota de putaria e mulher pelada.

Aí acontece o seguinte: as partes sérias e sinistras ficam separadas não apenas por longas cenas de sexo, mas também por várias bobagens que transformam a coisa toda em comédia involuntária. Tipo as roupas curtíssimas que Alice sempre veste (abaixo), incluindo shortinhos atolados na bunda ou que mal cobrem as suas "carnes"; ou o momento em que a "heroína" atravessa um enorme deserto a pé, correndo, sem água e PELADA; ou, ainda, a peruca de Lina Romay se soltando e caindo numa cena em que ela está "montada" em Antonio Mayans (e Franco nem se preocupou em cortar, já que foi ele quem editou o filme!).


E embora a Princesa Obongo perca de goleada para a Condessa Carody de Soledad Miranda em "Vampyros Lesbos", a exótica Ajita Wilson tem uma presença realmente hipnótica, e por isso é uma pena que tenha feito tão poucos filmes do gênero - na entrevista nos extras do DVD, Jess chega a compará-la a Christopher Lee!

A molecada de hoje não vai lembrar, mas Ajita provocou muita polêmica (e ganhou muitas manchetes) entre o final dos anos 70 e metade da década de 80. Nascida "George Wilson", ela começou sua carreira artística como travesti, mas logo fez uma operação de mudança de sexo e tornou-se uma desejada musa transsexual.


Numa época em que mudança de sexo ainda era tabu (lembram que, por aqui, Roberta Close também vivia nas manchetes pelo mesmo motivo?), Ajita aproveitou os holofotes e estendeu seus 15 minutos de fama, exibindo o "novo" corpo em uma série de filmes com sexo softcore (principalmente WIPs, aquelas histórias de mulheres na cadeia) e até alguns pornôs. Foi um sucesso: muita gente até hoje duvida que aquela negra de corpo escultural nasceu homem!

Ela já tinha sido dirigida por Franco no filme de mulheres na prisão "Sadomania" (1980), em que interpretou a sádica diretora de um campo de prisioneiras, e também contracenou com Lina Romay antes no pornô "Apocalipsis Sexual" (1981), de Carlos Aured e Sergio Bergonzelli.

Mas a Princesa Obongo é o grande papel da sua carreira, com direito a um diálogo que parece referir-se à própria Ajita Wilson: "Eu sou tudo que é proibido, uma mulher negra de sexualidade indefinida, devassa e irresistível!". Infelizmente, Ajita morreu prematuramente, de complicações resultantes de um acidente de trânsito que sofreu em 1987.


Para os conhecedores da filmografia do velho Jess, MACUMBA SEXUAL também tem duas curiosas piadas internas. A primeira é a participação do próprio diretor, repetindo o papel que fez em "Vampyros Lesbos" (o funcionário esquisitão de um hotel).

Lá em 1970, o personagem se chamava Memeth; aqui, é Memé! Só que agora ele não é um assassino de mulheres, como em "Vampyros Lesbos", mas "apenas" um voyeur, que fica espionando Alice pelada em seu quarto (o que acontece com bastante frequência, diga-se; e, como é comum nos filmes do diretor, a moça nem se preocupa em cobrir a nudez ao perceber que está sendo observada por um completo desconhecido!).


A outra brincadeira é o pseudônimo usado nos créditos iniciais pela atriz Genoveva Ojeda, que "interpreta" uma das "cachorras" da Princesa Obongo: LORNA GREEN - que, para quem não lembra, era o nome da personagem de Janine Reynaud em "Necronomicon" (1967). Desde então, várias "Lornas Green" apareceram em filmes do diretor, seja como nomes de personagens, seja como pseudônimos de atrizes.


Apesar dos pesares, MACUMBA SEXUALé um dos filmes mais bem filmados dessa fase picaretona do diretor, com belíssimo aproveitamento dos cenários naturais (as dunas das Ilhas Canárias realmente lembram um grande deserto, e lá pelas tantas aparece um barco que parece saído de uma velha aventura de piratas) e também da curiosa arquitetura da região (a mansão modernosa da princesa é um achado!)

É uma pena, portanto, que o filme siga pelo caminho fácil do erotismo softcore. E que a trama requentada de "Vampyros Lesbos" provoque uma sensação de déjà vu no espectador - mas é bom ressaltar que esta refilmagem disfarçada não chega a um dedinho do pé do sofisticadíssimo "Vampyros Lesbos"!


Do jeito que está, somente um tipo de espectador não se sentirá tentado a assistir MACUMBA SEXUAL fazendo uso da tecla Fast Foward: os fãs apaixonados de Lina Romay, que aqui, como já aconteceu em "A Maldição da Vampira" e "La Mansión de los Muertos Vivientes" (entre tantos outros), terão a oportunidade de estudar o corpão da musa espanhola nos seus mais mínimos detalhes.

Mas quem resistir bravamente à narrativa redundante se deparará com um filme bem estranho e hipnótico, às vezes incômodo pelos poucos diálogos, às vezes até assustador pelo excesso de cenas de pesadelo/delírio. Poderia ser bem melhor? Sim, poderia. Mas, a julgar pelas tranqueiras que Franco fazia nessa fase "liberdade total", também poderia ser bem pior!

Chuta que é macumba? Não necessariamente: fãs do cinema Franquiano irão se divertir com certeza; mas eu definitivamente não recomendaria para novatos na obra do diretor...




***********************************************************
Macumba Sexual (1981, Espanha)
Direção: Jess Franco
Elenco: Lina Romay (aka Candy Coster), Ajita Wilson,
Antonio Mayans (aka Robert Foster), Genoveva Ojeda
(aka Lorna Green), José Ferro e Jess Franco.

PESADELOS NOTURNOS (1970)

$
0
0

Em 1970, Jess Franco fez seu nono e último filme com o produtor inglês Harry Alan Towers ("Eugenie... The Story of her Journey into Perversion"), e logo começou uma rápida parceria com o polonês radicado na Alemanha Artur Brauner, com quem filmaria as obras que transformaram Soledad Miranda numa musa eterna (entre elas, "Vampyros Lesbos" e "Ela Matou em Êxtase").

Jess teve alguns meses de descanso entre o rompimento com Towers e a nova sociedade com Brauner, mas, ao invés de tirar umas férias (já que vinha fazendo diversos filmes por ano desde 1967!), o incansável diretor espanhol arrumou tempo para rodar TRÊS obras baratíssimas em Liechtenstein, um minúsculo (e riquíssimo) país europeu encravado entre a Suíça e a Áustria.

Um dos títulos dessa rapidíssima "Fase Liechtenstein"é bem conhecido ("Eugenie De Sade"), enquanto os outros dois foram filmados, finalizados e depois "perdidos". Destes, um segue perdido até hoje, mas o outro foi resgatado do limbo depois de três décadas: "Les Cauchemars Naissent la Nuit" ("Os Pesadelos Nascem à Noite"), lançado em DVD no Brasil (duas vezes!) com o título genérico de PESADELOS NOTURNOS.


Bem longe de ser um dos trabalhos mais inspirados do diretor (apesar de várias resenhas rasgarem seda, dizendo que é "uma pedra preciosa que não foi polida"), PESADELOS NOTURNOSé um "filme Frankenstein", que Franco montou usando cenas filmadas para outro projeto e muito improviso - a inconsistência da coisa toda fica bem evidente desde as primeiras cenas.

Não por acaso, a produção foi realizada com uma equipe diminuta, pouquíssimos recursos e um dos menores orçamentos que o diretor teve na vida - durante muito tempo, ele até citava esse título quando lhe perguntavam qual tinha sido a sua produção mais barata!


Mesmo assim, é uma obra que merece certo lugar de destaque na filmografia Franquiana pelo seu valor histórico: conforme o pesquisador Lucas Balbo, um dos autores do livro "Obsession: The Films of Jess Franco", PESADELOS NOTURNOSé o primeiro thriller 100% erótico de Jess, em que a sacanagem rola solta sem medo da censura, e todas as desculpas possíveis e imagináveis são usadas para pelar as personagens - de cenas de banho ao hábito de dormir com um roupão de cetim totalmente aberto!

Até já havia safadeza e mulher pelada em obras anteriores do diretor, como "Necronomicon" (1967) e "Santuário Mortal" (1968). Mas é aqui que Franco chuta de vez o pau da barraca e escancara a nudez e o sexo (as transas ainda são tímidas, mas certamente bem fortes e ousadas para a época, até por envolverem lesbianismo).


PESADELOS NOTURNOS conta a história de Anna (Diana Lorys), uma mulher que está sofrendo com terríveis pesadelos recorrentes em que mata um amante desconhecido. Numa das manhãs em que acorda do seu sono agitado, ela constata que tem sangue nas próprias mãos, e que talvez aquele seu pesadelo possa ter algum fundo de verdade...

Cynthia (Colette Giacobine), a namorada de Anna, não acredita na história e acha que ela está ficando louca. Por isso, pede a ajuda de um psiquiatra, o Dr. Vicas (Paul Muller), para tentar controlar os pesadelos da garota.


Só que a situação não melhora. E, para complicar a história, um dia Anna conhece o homem que mata em seus sonhos (interpretado por Jack Taylor). Será que o pesadelo irá finalmente se tornar realidade?

Paralelamente, um casal de vizinhos espiona o casarão em que Anna e Cynthia vivem juntas. Trata-se de uma dupla de ladrões, interpretados por Andrés Monales e Soledad Miranda, que parecem matar tempo para reaver uma fortuna em diamantes roubados de uma joalheria. Mas qual a relação do casal de ladrões com o casal de lésbicas da casa ao lado, ou com os pesadelos de Anna?


Bem, oficialmente não existia relação nenhuma: acontece que essas cenas não foram originalmente filmadas para PESADELOS NOTURNOS, e sim para uma espécie de teste de elenco que Franco filmou em 1969, entre as gravações de "O Trono de Fogo" e "Conde Drácula", para convencer o produtor Harry Alan Towers a contratar a ainda desconhecida Soledad Miranda para integrar o elenco da sua adaptação de Drácula!

Assim, Jess aproveitou uma folguinha para filmar de 10 a 15 minutos de cenas meio aleatórias em que Soledad e Monales vigiam a "casa ao lado" com um binóculo, e provavelmente sem pensar numa trama específica para estas cenas. Funcionou, e Towers aprovou a contratação de Soledad para "Conde Drácula". Mas quem em sã consciência não o faria, depois de ver a belíssima espanhola vestindo apenas botas de cano longo e com a bundinha empinada?


O fato de as cenas com Soledad e Andrés Monales originalmente não terem nenhuma relação com a história de PESADELOS NOTURNOS também explica porque o casal de ladrões nunca interage com os demais personagens do filme (afinal, as cenas foram feitas um ano antes!), passando o tempo todo dos seus 10 a 15 minutos num único set, que tem a inscrição "Life is all shit!" riscada na parede!

Aí, numa tática digna do que depois fariam geniais picaretas como Bruno Mattei e Godfrey Ho, Franco apenas redublou os diálogos e filmou um único trechinho novo com dublês de corpo de Monales e Soledad para conseguir "inseri-los" na nova história e dar-lhes um destino condizente!


Uma evidência do truque é o fato de as cenas "antigas" (estas com o "casal de assaltantes") terem sido filmadas num formato de tela (1.66:1) e as "novas" em outro (1.33:1). Isso fica ainda mais perceptível no primeiro DVD de PESADELOS NOTURNOS, que foi lançado pela Shriek Show/Media Blasters em 2004: a maior parte do filme está em tela cheia, e apenas as cenas com Soledad e Monales aparecem no formato diferente. Recentemente, quando a obra foi relançada em blu-ray por outra empresa (Redemption), a distribuidora corrigiu o problema transformando o filme todo em 1.66:1 (cortando um pouquinho a parte de cima e de baixo da imagem nas cenas filmadas no outro formato).


PESADELOS NOTURNOS tem uma estrutura bastante informal e experimental, com pouquíssimos personagens (são seis atores no total, contando a "ponta" de Soledad e Monales) e duas ou três locações, a maior parte em internas. Por isso, o filme poderia ser facilmente transformado numa peça teatral.

Para alguns pesquisadores da filmografia de Jess, este trabalho modesto e "pequeno" seria uma forma de o diretor descansar a cabeça daquelas grandes produções que rodou com Harry Alan Towers, que tinham grandes orçamentos, atores famosos e dezenas de sets e figurantes - e, por isso mesmo, exigiam muito dele e restringiam sua criatividade e propensão a improvisos.


No final, o que parecia ser um thriller erótico constituído apenas de pesadelos e delírios da protagonista, e sem preocupar-se com explicações (como acontecia no anterior "Necronomicon"), dá uma grande virada, transformando-se em história policial.

Acontece que (SPOILERS) os pesadelos de Anna estão sendo induzidos pelo próprio Dr. Vicas através de hipnose, com o objetivo de enlouquecê-la, forçá-la a cometer suicídio e assim abafar o caso do roubo dos diamantes - tanto o psiquiatra quanto Cynthia estão de conluio com o casal de assaltantes da casa ao lado. (FIM DOS SPOILERS)

E se não parece fazer muito sentido, é porque realmente não faz!


Pesadelos eróticos e personagens que se tornam assassinos sob controle de terceiros são temas recorrentes na filmografia do diretor, que já apareceram antes e reapareceriam até com certa frequência depois. A mulher que é forçada a matar por influência de outras pessoas já tinha aparecido em "Miss Muerte" (1965) e "Necronomicon", e em ambos os filmes a protagonista também era dançarina, como Anna aqui.

Já a protagonista que está sendo assombrada por pesadelos, e que logo perde a noção entre sonho e realidade, vem de "Necronomicon", mas reapareceria depois em "A Virgin Among the Living Dead", "Vampyros Lesbos", "Macumba Sexual" (1981), e diversos outros filmes assinados por Franco.


O maior problema de PESADELOS NOTURNOSé que se percebe claramente que o filme todo nasceu de um improviso do diretor e dos atores (tem cara de ter sido gravado em poucos dias), e apenas para reaproveitar aquelas cenas de arquivo com a musa trágica de Jess, Soledad Miranda, morta num acidente de automóvel em 18 de agosto de 1970, aos 27 anos de idade.

Franco precisou enrolar bastante para conseguir fechar o tempo de um longa-metragem, e a tática adotada foi bem simples: além de repetir os pesadelos de Anna ad nauseam, ele também usou os vários encontros de Anna com o Dr. Vicas como desculpa para bombardear o espectador com flashbacks, quando a garota conta a história da sua vida para o psiquiatra!


Estes flashbacks são gigantescos e ocupam a maior parte da narrativa (no caso, os 45 minutos iniciais de um filme de oitenta e poucos minutos!), mostrando que Anna trabalhava como dançarina em um night club de Zagreb (na Iugoslávia) até conhecer Cynthia, começar a namorar e ser convidada para morar no casarão da loira - que, à época, já estava com "terceiras intenções" em relação à stripper.

Ainda nos flashbacks, Anna apresenta um número de striptease que é simplesmente interminável - segundo a narração da própria moça, seu patrão lhe pedia para "demorar bastante" de maneira a manter os clientes entretidos e consumindo, uma tática até hoje usada nos puteiros da vida real.

O problema é que tanto a personagem quanto o diretor exageram na dose: o tal striptease de Anna dura OITO MINUTOS (!!!), e se eu fosse um cliente do tal night club certamente pegaria no sono com a chatice do número (até porque a "stripper" passa a maior parte do seu "striptease" vestida e tentando sensualizar enquanto fuma um cigarro!).


E não acontece muito mais coisa ao longo do resto do filme, que se resume a Diana Lorys, Colette Giacobine e Soledad Miranda nuas, ou Diana e Colette rolando peladas pela cama simulando uma relação sexual, ou ainda Diana Lorys chorando as pitangas para o psiquiatra interpretado por Paul Muller.

Somente nos 20 minutos finais a história começa a engrenar, mas o caminho até chegar aí é realmente tortuoso (e arrastado), parecendo provocar o espectador para usar o botão Fast Foward. Até a trilha sonora do italiano Bruno Nicolai é genérica e nada memorável.


No fim, chega a ser curioso o fato de Soledad Miranda roubar o filme, e isso naqueles 10 ou 15 minutos de CENAS DE ARQUIVO sem nenhuma relação com a trama principal! A capinha do DVD da Media Blasters é uma bela picaretagem, e estampa uma imagem grandona da musa em destaque, como se ela fosse a atriz principal do filme.

No Brasil, PESADELOS NOTURNOS foi lançado duas vezes em DVD (pela Continental e pela Vinny Filmes), e aqui também repetiu-se a malandragem de dar destaque para Soledad nas capinhas, embora ela seja apenas figurante.


E é irônico que Diana Lorys apareça bem desinibida no filme, quase sempre pelada, considerando que ela havia arregado e pedido uma dublê de corpo para uma única ceninha de peitos de fora em "O Terrível Dr. Orloff" (1961)!

A atriz espanhola estava com 30 anos ao estrelar PESADELOS NOTURNOS, mas, embora não esteja exatamente feia, aparenta muito mais idade (envelheceu mal), e está bem diferente daquela gracinha que enfrentou o Dr. Orloff quase dez anos antes. Sua carreira não foi adiante, e ela abandonou o cinema em 1978. Menos sorte teve sua "namorada" na trama, Colette Giacobine (creditada como "Colette Jack"), que apareceu em apenas mais dois filmes.


PESADELOS NOTURNOS garante ainda um raro papel de destaque para o ator suíço Paul Muller (abaixo), que fez 16 filmes com Jess (começando com "Vênus em Fúria", em 1968), mas geralmente sem tanto tempo em cena. Seu Dr. Vicas (é o mesmo nome do médico interpretado por Howard Vernon em "Miss Muerte") aparece como um homem dividido entre o plano maquiavélico para enlouquecer Anna e o carinho que ele começa a sentir por sua "paciente".

Em uma de suas raras entrevistas, Muller comentou sobre esses projetos improvisados do diretor: "Não me incomodava que Franco rodasse vários filmes ao mesmo tempo, isso até me divertia. Mas é inegável que a qualidade do filme sofria muito com isso. E é uma pena, porque Franco tem um grande talento, mas sua forma de trabalhar não é a tradicional. Não há um roteiro definido, os diálogos são geralmente improvisados, e temos muito pouco tempo para decorá-los. E, com ele, você sempre precisa ter muito cuidado, pois com alguns takes de cá e de lá ele já te coloca num outro filme sem que você saiba!".


Mais interessante que a própria obra é a verdadeira odisseia por que ela passou até ser redescoberta. Franco filmou PESADELOS NOTURNOS em 1970, mas o filme só ganhou sua primeira exibição três anos depois, e NUMA ÚNICA SALA DE CINEMA na Bélgica (embora existam relatos nunca confirmados de exibições também em alguns cinemas da América do Norte).

Depois disso, esta única cópia exibida e os negativos originais desapareceram sem deixar rastros, e PESADELOS NOTURNOS tornou-se tão obscuro que até o ator Jack Taylor esqueceu que havia feito o filme!


Na década de 70, o roteirista e ator Alain Petit descobriu que os negativos acabaram com o produtor francês Robert de Nesle (que bancou diversos trabalhos de Franco, incluindo "La Comtesse Perverse"). Aparentemente, Jess colocou-o como "produtor associado" de PESADELOS NOTURNOS meio no trambique, mas de Nesle nunca conseguiu distribuir o filme oficialmente porque o diretor não tinha um certificado de origem ou qualquer documento atestando seus direitos sobre a obra!

Passaram-se mais alguns anos e, com a morte do produtor francês (em 1978), sua filha repassou todo o seu inventário para a Cinémathèque Française. No meio do material, estavam os rolos do raríssimo PESADELOS NOTURNOS!


Foi quando Petit entrou na história, descobriu o paradeiro do filme e contatou Daniel Lesoeur, da produtora francesa Eurociné, sugerindo que ele obtivesse os direitos para finalmente lançá-lo comercialmente - Lesoeur tinha uma pequeníssima participação na produção, pois uma das cenas do longa foi filmada na cozinha da casa de campo da sua família!

Demoraria mais alguns anos (ou décadas) para o imbróglio relacionado a direitos ser resolvido e PESADELOS NOTURNOS finalmente ver a luz do dia. Esta única cópia existente foi recuperada e lançada em DVD em 2004 (ganhando o título em inglês "Nightmares Come at Night"), 34 anos depois de ser filmado e três décadas depois da sua primeira (e única) exibição na Bélgica!

Pena que, para uma obra que ficou perdida por três décadas, e que chegou a ser considerada um verdadeiro "Santo Graal" pelos fãs de Jess Franco - ou "elo perdido" entre as produções caprichadas de Harry Alan Towers e o momento em que o diretor descambou para os filmes de mulher pelada e sacanagem produzidos por Artur Brauner -, PESADELOS NOTURNOSé bem frustrante.


Com o ressurgimento do filme, o novo "Santo Graal" dos fãs do diretor é o outro trabalho perdido da sua "Fase Liechtenstein", que também foi muito mal-lançado e cujo paradeiro atualmente é desconhecido. Trata-se de "Sex Charade" (pôster abaixo), que foi filmado logo depois de PESADELOS NOTURNOS e compartilha o mesmo elenco: Soledad Miranda, Jack Taylor, Diana Lorys e Paul Muller, mais Howard Vernon e Maria Rohm.

Pelo menos o resumo da trama de "Sex Charade" promete muito mais que PESADELOS NOTURNOS: é sobre um assassino psicopata que foge do manicômio e se refugia na casa de uma bela jovem, que é tomada como refém. Para passar o tempo, o maníaco pede que a garota lhe conte uma história, e ela narra uma versão alegórica daquela própria situação.

É claro que, como tudo relacionado a Jess Franco, não dá para confiar muito na sinopse, que pode ser apenas desculpa para muitas cenas de sonhos/delírios ou de mulher pelada. Mesmo assim, esperemos que "Sex Charade" veja a luz do dia em breve, assim como tantas outras obras nunca lançadas ou inacabadas do prolífico diretor...

PS: Além de PESADELOS NOTURNOS passar tranquilamente como refilmagem de "Necronomicon" (ou "reciclagem da trama"), Franco recontou a mesmíssima história, com pequenas alterações, pelo menos mais duas vezes. A primeira foi em "Los Ojos Siniestros del Doctor Orloff" (1973), em que a personagem de Montserrat Prous é atormentada por pesadelos nos quais comete crimes, e resolve chamar o Dr. Orloff (!!!) para ajudá-la. A segunda foi em "Mil Sexos Tiene la Noche" (1982), já da fase vale-tudo para a Golden Films na Espanha, e desta vez com Lina Romay tendo os pesadelos com assassinatos que ela pode ou não ter cometido na vida real.


Trailer de PESADELOS NOTURNOS



*******************************************************
Les Cauchemars Naissent la Nuit
(1970, Liechtenstein)

Direção: Jess Franco
Elenco: Diana Lorys, Paul Muller, Soledad Miranda,
Colette Giacobine, Andrés Monales e Jack Taylor.

Estamos enfrentando problemas técnicos...

$
0
0

Pelo visto, o meu computador velho de guerra não aguentou a overdose de Jess Franco aqui no FILMES PARA DOIDOS e pediu arrego, justamente enquanto eu preparava a atualização sobre um dos meus filmes preferidos do homem, "Ela Matou em Êxtase". Até tentei usar um notebook para manter as prometidas atualizações diárias, mas não consigo me acostumar a trabalhar com teclado e mouse tão pequenos (o velhote aqui é old school).

Portanto, o negócio é esperar o computador oficial voltar do conserto - e, espero, com os textos e imagens já prontos ainda intactos - para dar prosseguimento à reta final da nossa MARATONA JESS FRANCO! Enquanto isso, não deixem de ler ou reler as postagens antigas.

Aguardemos...

ELA MATOU EM ÊXTASE (1970)

$
0
0

Ah, Soledad Miranda...

Mais de quatro décadas depois do acidente de carro que matou a atriz espanhola no auge do sucesso, aos 27 anos de idade, muito já foi dito e escrito tentando explicar como é que o fascínio pela grande musa do diretor Jess Franco pode durar tanto tempo. Até porque atores e atrizes muito mais famosos, e com uma obra muito mais importante, não têm nem metade do culto da moça, cuja carreira é bem mais obscura para o "grande público".

Nascida em 1943, Soledad Miranda virou uma espécie de personificação da perfeição feminina nos filmes de Franco. E a parceria entre eles só não durou mais por causa da morte da atriz. Além da injustiça de um desfecho trágico quando se está no auge (que costuma garantir a imortalidade dos artistas), há algo de fascinante e hipnótico na persona de Soledad. Algo que o próprio Franco procurou obsessivamente depois, adotando Lina Romay como "musa sucessora", mesmo sabendo que entre as duas não havia comparação.


A melhor forma de entender o fascínio por Soledad Miranda é ver ELA MATOU EM ÊXTASE, um dos grandes filmes da sua curta trajetória como atriz - e, segundo o pesquisador Tim Lucas, o último que ela estrelou antes de sua morte prematura, embora algumas outras fontes aleguem que o título pertence ao thriller de espionagem "Der Teufek Kam aus Akasava".

Também é uma das grandes obras-primas de Franco, e um dos meus títulos preferidos da filmografia do diretor. Como é um filme onde o visual vale mais do que o resto, resolvi fazer uma resenha também visual, com mais imagens do que texto, só para variar um pouquinho.


ELA MATOU EM ÊXTASE faz parte de um período imediatamente posterior à associação com o produtor inglês Harry Alan Towers, e de um ano de "férias" em Liechtenstein, onde Franco acabou rodando três filmes de baixíssimo orçamento ("Pesadelos Noturnos", "Eugenie De Sade" e "Sex Charade", este último considerado perdido).

A partir daqui (começo dos anos 1970), Jess começou a dirigir co-produções Alemanha-Espanha para Artur Brauner (de Berlim) e Arturo Marcos (de Barcelona). "Vampyros Lesbos" foi o primeiro do pacote, seguido por "Der Teufek Kam aus Akasava" e finalmente por ELA MATOU EM ÊXTASE, que é uma espécie de refilmagem disfarçada de um belíssimo filme da fase clássica do diretor - "Miss Muerte", de 1965.

"Miss Muerte" contava a história de uma jovem cientista que se vinga dos médicos que teriam provocado a morte do seu velho pai cientista (por infarto, após ser humilhado pelos colegas ao apresentar o resultado de suas experiências numa conferência). Como arma de vingança, a protagonista utiliza uma sensual dançarina exótica, que segue suas ordens graças a um dispositivo de controle mental, e mata as vítimas com suas longas unhas envenenadas.


A principal diferença de ELA MATOU EM ÊXTASE para "Miss Muerte"é que aqui não há dançarina exótica controlada como se fosse zumbi: é a própria protagonista quem resolve sujar as mãos de sangue (literalmente). E é claro que a tal protagonista é ninguém menos que Soledad Miranda, o que torna a morte dos pobres médicos ainda mais doce.

Ela interpreta uma garota anônima - que, durante o filme, será chamada apenas de "Sra. Johnson" -, casada com o "Sr. Johnson" (Fred Williams), um médico idealista que faz experiências pouco ortodoxas com embriões humanos, na tentativa de entender o código genético e, através da mistura de hormônios humanos e animais (!!!), produzir "futuros seres humanos mais fortes e resistentes a doenças".


Apesar das boas intenções do doutor, o Conselho de Medicina condena as suas pesquisas, acusando-o de charlatão e açougueiro, e mandando destruir seu laboratório. Quando a licença médica do Dr. Johnson é revogada, ele vai lentamente perdendo o juízo, não sai mais da cama e nem reconhece a própria esposa, imerso em seus devaneios.

A jovem esposinha até tenta reanimar seu amor, levando-o à casa de praia onde eles viveram diversos momentos de prazer (e que é a famosa mansão Xanadú, em Alicante, na Espanha, uma bela obra projetada pelo arquiteto cubista Ricardo Bofill). Só que o médico não consegue resistir à humilhação sofrida e, aproveitando um momento de descanso da sua vigilante amada, comete suicídio cortando os pulsos.


Isso acontece nos primeiros 20 minutos do filme, e os outros 50 basicamente apenas acompanham a vingança da Sra. Johnson contra os quatro membros do Conselho Médico que ela julga responsáveis pelo suicídio do seu marido.

Os alvos da "heroína" são o Professor Walker (Howard Vernon, que também foi morto pela Miss Muerte no "filme original" de 1965), a Dra. Crawford (Ewa Strömberg), o Dr. Houston (Paul Muller) e o Dr. Donen, este último interpretado pelo próprio diretor Franco (que reservou para si a morte mais cruel nas mãos da própria musa!).


Todos os quatro serão primeiro seduzidos pela irresistível viúva assassina, e então mortos em pleno ato sexual, num desfecho que lembra a cópula de certos insetos, como o gafanhoto e o louva-a-deus (cuja fêmea mata o macho na hora do orgasmo).

Apesar do título do filme, nenhum deles chega ao orgasmo antes da morte: o "êxtase" em questão é da própria assassina, que faz caras e bocas de prazer enquanto esfaqueia, corta, asfixia e tortura suas vítimas!

Paralelamente, um inspetor de política (interpretado por Horst Tappert) investiga os misteriosos assassinatos, mas sempre chega atrasado na cena do crime.


ELA MATOU EM ÊXTASE foi filmado entre 21 de junho e 17 de julho de 1970, logo depois da conclusão das filmagens de "Vampyros Lesbos" e ao mesmo tempo em que o diretor terminava de gravar cenas de "Der Teufek Kam aus Akasava".

Por isso, estes três filmes têm muito em comum, inclusive dividindo o mesmo elenco (Soledad e Ewa aparecem nos três; Williams, Muller, Vernon e Tappert nos últimos dois). Já Soledad e a sueca Ewa se divertem protagonizando cenas lésbicas tanto aqui quanto no anterior "Vampyros Lesbos".


Escrito pelo próprio Franco (ele assina direção e roteiro com o pseudônimo "Frank Hollman"), o filme tinha o título original de "Miss Hyde" (ou "Mrs. Hyde", segundo algumas fontes), tentando forçar uma associação com a clássica história "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson. Mas o nome foi logo substituído por "Sie Tötete in Ekstase".

Analisando friamente, hoje já não há mais nada de tão surpreendente nesta história de vingança bem simples: passados os primeiros 20 minutos, a narrativa apenas acompanha a vingança da viúva sem grandes lances de suspense ou surpresas, apenas pulando de uma cena de sedução seguida de morte para outra, e sem nada de muito violento ou chocante, ainda mais para essa geração movida a "Jogos Mortais". As cenas de assassinato são bem tímidas (tesourada na nuca, punhaladas off-screen...), e somente o ataque ao personagem de Franco é um pouco mais sangrento.


Mas há algo de irresistível na falta de ética, ou no "politicamente incorreto" da coisa toda. Afinal, a “heroína” do filme é uma viúva buscando vingança contra aqueles que ela acredita terem provocado a morte do seu marido; porém, quando você pára e pensa que o tal marido não era um pobre inocente, e sim um médico que fazia experiências proibidas com embriões humanos, percebe que ELE era o errado da história, e não o Conselho Médico que o condenou (por justa causa)!

Assim, como já acontecia em "Miss Muerte", os médicos assassinados pela protagonista não são exatamente "culpados"; sua única culpa é a de ter evocado o famoso Juramento de Hipócrates, segundo o qual os profissionais da saúde se comprometem a praticar a medicina honestamente.


Além da vingança "anti-ética", imagine o impacto no público da época quando a protagonista também começa a perder o juízo após os consecutivos assassinatos, escondendo o cadáver do marido na casa de praia e acompanhando a decomposição do cadáver enquanto conversa com ele como se ainda estivesse vivo!

Enquanto "Miss Muerte" foi filmado numa época em que Jess ainda era marcado de cima pela censura espanhola, ELA MATOU EM ÊXTASE já mostra sexo e perversão de maneira um pouquinho mais liberal. Além de diversas cenas de sexo softcore (incluindo uma relação "Girls Just Want to Have Fun" entre Soledad e Ewa), o Dr. Walker se revela um adepto de sadomasoquismo (tema recorrente na obra do diretor), que pede para a protagonista humilhá-lo, arranhá-lo e estapeá-lo na hora do rala-e-rola!


Somente a conclusão é um tanto decepcionante, quando Tappert, o tal investigador que não investiga nada, finalmente conclui que a Sra. Johnson é a culpada pelos crimes e vai até a casa de praia do casal para prendê-la. (SPOILERS) Aí a vingadora foge de carro, com o cadáver do marido no banco do passageiro, mas morre num acidente que é inacreditável de tão mal-filmado: Franco mostra apenas um veículo descendo uma ladeira leve, e tenta fazer o espectador acreditar que aquilo poderia ser um acidente fatal! Ironicamente, naquele esquema “a vida imita a arte”, a saída de cena de Soledad Miranda parece antecipar a sua morte trágica também na vida real, já que ela sofreu um acidente de automóvel quando estava ao lado do marido (que sobreviveu). Melancolicamente, as últimas palavras dela no filme são:"Na morte, ficaremos juntos para sempre. Em breve estarei com você". (FIM DOS SPOILERS)


O nome do ator alemão Horst Tappert (abaixo) hoje é pouco lembrado, mas sua presença no filme se justifica pelo fato de ele ser bastante popular em aventuras policiais filmadas na Alemanha da época - geralmente adaptações de obras de Edgar Wallace, num subgênero que ficou conhecido como "Krimi". Tappert inclusive virou celebridade alguns anos depois, ao estrelar o seriado de TV alemão "Derrick" no papel-título do detetive Stephan Derrick. Esta série durou 281 episódios, veiculados entre 1974 e 1998!

Tempos atrás, li uma resenha que fazia uma outra interpretação do fracasso do investigador de ELA MATOU EM ÊXTASE para chegar à responsável pelos crimes: ele na verdade saberia, desde o começo, que a culpada de tudo era a Sra. Johnson, mas simpatizou com o motivo da vingança da viúva e resolveu embaçar a investigação de propósito, para que ela tivesse tempo de matar seus quatro alvos. É uma ideia até interessante, mas não há nada no filme que justifique tal interpretação.


Outra participação curiosa no elenco é a do espanhol Germán Robles, interpretando um policial anônimo que integra a equipe de Tappert. Hoje seu nome também anda esquecido, mas entre os anos 50 e 60 Robles foi praticamente um "Christopher Lee espanhol", por fazer papel de vampiro em produções mexicanas de horror. O mais famoso foi como o Conde Karol no clássico "El Vampiro" (1957) e sua continuação "El Ataúd del Vampiro" (1958), ambos dirigidos por Fernando Méndez, mas ele também interpretou o Conde Nostradamus (?!?) em quatro filmes produzidos entre 1960 e 1962, e um vampiro anônimo em "El Castillo de los Monstruos" (1958), de Julián Soler.


Mas esqueça esses atores, pois eles não têm vez: ELA MATOU EM ÊXTASE é um veículo todinho de Soledad Miranda, feito para transformá-la em estrela. Ela aparece usando dezenas de figurinos diferentes, um mais glamouroso do que o outro, além de três ou quatro perucas. Também está praticamente o tempo todo em cena, e a narrativa gira ao seu redor.

Nos créditos, a atriz usa o tradicional pseudônimo "Susann Korda", tirado dos sobrenomes da autora de "O Vale das Bonecas", Jacqueline Susann, e do produtor de "O Ladrão de Bagdá", Alexander Korda. Depois da Condessa Nadine Carody de "Vampyros Lesbos", que já a apresentava como uma espécie de entidade acima dos humanos "normais", aqui Soledad aparece representando a perfeita encarnação da dobradinha "sexo e morte", tão comum na longa filmografia de Jess Franco.


Sua Sra. Johnson seduz e mata as quatro vítimas como se fosse um vampiro, e, não por acaso, em vários momentos do filme ela aparece usando uma capa de cor púrpura à la Drácula - às vezes veste APENAS esta capa! O filme não mede esforços para representar o sex-appeal de Soledad: depois que a primeira vítima é assassinada, as outras três começam a desconfiar que estão na mira de um assassino, mas simplesmente não conseguem resistir aos encantos da vingadora quando ela finalmente se apresenta.

Isso fica bem representado na cena envolvendo o personagem de Paul Muller (sequência abaixo), que é o terceiro a morrer. Ele começa a ser "stalkeado" pela viúva assassina durante dias, em igrejas, bares, escadarias... A moça aparece até no reflexo de espelhos, como se fosse a própria Morte! Aí, mesmo tendo certeza de que a garota é a culpada pelos crimes, e que eventualmente ele também acabará sendo assassinado, o médico se rende e se entrega a um último momento de prazer com o próprio carrasco! Afinal, se a morte é inevitável, que pelo menos seja nos braços de Soledad Miranda de lingerie!


Como vários trabalhos de Franco do período 1960-1970, há um charme modernoso que permeia o filme inteiro, dos cenários e figurinos esquisitos (tipo o exterior da mansão Xanadú, reaproveitado depois pelo diretor em "La Comtesse Perverse"; o laboratório do cientista, ou as roupas utilizadas por Soledad, que parecem saídas das páginas de uma revista em quadrinhos), à belíssima fotografia cheia de cores fortes de Manuel Merino.

Por isso, é obrigatório fugir do DVD brasileiro, lançado pela Continental com a imagem em tela cheia, e do importado da Synapse Films, que tem as cores lavadas e apagadas. A melhor versão do filme atualmente no mercado é a da Image Entetainment, como você pode ver pelas fotos dessa resenha.



ELA MATOU EM ÊXTASE não é um filme de diálogos, nem tem uma história surpreendente e cheia de reviravoltas; são as imagens que conduzem a trama. E o resultado é tão elegante quanto o anterior "Vampyros Lesbos". Inclusive aqui também foi usada uma esquisitíssima trilha sonora lisérgica da dupla Manfred Hübler e Siegfried Schwab, com intervenções do maestro italiano Bruno Nicolai.

Apesar de ser uma história sobre assassinatos violentos, tudo no filme é de uma beleza impecável. Repare, por exemplo, na cena em que a viúva vingativa seduz a Dra. Crawford (sequência abaixo): o primeiro beijo entre as moças fica escondido por trás de um copo de vinho, que Soledad estrategicamente coloca bem na frente da câmera, em primeiro plano; depois, há um longo e sensual momento em que uma atriz despe a outra, lentamente, à meia-luz; finalmente o prazer é interrompido pela morte súbita da médica, que é sufocada com o uso de uma almofada plástica - permitindo que, num momento que lembra muito o cinema de Dario Argento (à época, ainda um novato), a assassina possa assistir o desespero da sua vítima através do plástico transparente!


ELA MATOU EM ÊXTASEé aquele tipo de filme simplório, mas com um charme todo especial, cujo fascínio fica até difícil de explicar. Mas uma coisa é inegável: foi dirigido por um Jess Franco em êxtase, com sua musa Soledad Miranda em êxtase, e qualquer fã de ambos ficará igualmente extasiado ao (re)descobrir essa pequena pérola!

Soledad, por sinal, também morreu em êxtase: no dia anterior à sua morte, Franco foi até o apartamento da atriz, em Lisboa, com uma ótima notícia: Brauner, o produtor alemão que vinha bancando seus últimos filmes, queria assinar um contrato de exclusividade com ela por dois anos, e que lhe garantiria pelo menos quatro papeis principais em filmes de maior orçamento - o que poderia transformá-la numa grande estrela, pelo menos na Europa.


Diz a lenda que Soledad estava indo justamente assinar esse contrato com Jess e Brauner quando sofreu o acidente fatal na rodovia entre Estoril e Lisboa, no dia 18 de agosto de 1970. ELA MATOU EM ÊXTASE foi lançado nos cinemas alemães mais de um ano depois, em dezembro de 1971.

"Ela deixou para trás um incrível legado", disse o diretor, sobre sua musa, no livro "Obsession: The Films of Jess Franco". E continua: "Todas as mulheres que atuaram nos meus filmes depois dela foram profundamente afetadas por este legado. Lina Romay, por exemplo, teve momentos em que parecia completamente possuída por Soledad, até se tornar Soledad Miranda! Meus atores, minha equipe e eu mesmo, todos temos sentimentos profundos por ela, e ela ainda existe para nós".

Felizmente, como escreveu Tim Lucas no mesmo livro, o tempo de Soledad Miranda entre nós pode ter sido bem curto, mas felizmente havia câmeras registrando!


Trailer de ELA MATOU EM ÊXTASE



***********************************************************
Sie Tötete in Ekstase 

(1970, Alemanha/Espanha)
Direção: Jess Franco (aka Frank Hollman)
Elenco: Soledad Miranda, Ewa Strömberg, Howard
Vernon, Paul Muller, Fred Williams, Horst Tappert
Germano Robles e Jess Franco.

SEM FACE (1987)

$
0
0

A filmografia de Jess Franco na década de 1980 provavelmente ficaria restrita às produções baratíssimas que ele fez para a Eurociné (França) e para a Golden Films (Espanha) se não fosse por René Chateau. Pois eis que este famoso exibidor e distribuidor francês - uma espécie de Luiz Severiano Ribeiro de Paris - resolveu se aventurar na produção dos seus próprios longas, e começaria financiando um filme de horror. Assim, acabou chegando ao velho Jess, graças à sua fama de fazer filmes eficientes com pouca grana.

Chateau tinha uma ideia pouco original sobre um cirurgião plástico louco que sequestra garotas para retirar-lhes o rosto e tentar devolver a face deformada da sua irmã - mais uma versão do clássico francês "Os Olhos Sem Rosto" (1960), de Georges Franju.

Franco aceitou o trabalho, mas aproveitou para exumar o cadáver do seu personagem mais famoso (o Dr. Orloff) e do seu filme mais famoso ("O Terrível Dr. Orloff", de 1961), e assim surgiu "Les Prédateurs de la Nuit", conhecido mundialmente como FACELESS e lançado em DVD no Brasil com o título SEM FACE.


O mais interessante sobre SEM FACEé que o diretor espanhol estava acostumado a trabalhar com orçamentos que iam diminuindo até quase sumir durante as filmagens, o que exigia que ele apelasse para mudanças no roteiro e/ou improvisos diversos para conseguir terminar o filme.

Aqui foi justamente o contrário: o que começou como um terror de baixo orçamento acabou se transformando numa produção de alto nível, com atores famosos (e "classudos"), cenários luxuosos e até efeitos especiais decentes. Segundo o próprio Franco, esta foi a produção mais cara que ele dirigiu em toda a sua vida, com um orçamento de alguns milhões de dólares.


Até por causa disso, muitos fãs do diretor consideram esta uma obra "menor" na sua filmografia, um trabalho menos pessoal e mais "mainstream", feito exatamente para atingir um público mais amplo - e até para comprovar que um especialista em filmes baratos e experimentais, como Jess, poderia atingir outros públicos.

SEM FACEé realmente um dos filmes mais acessíveis de Franco, ainda mais por ter sido feito numa época em que seu trabalho estava pendendo mais para o erotismo quase explícito ("Macumba Sexual", "La Mansión de los Muertos Vivientes"), sem muita preocupação em criar histórias redondinhas, com começo, meio e fim. Pois aqui Jess volta a dirigir um HORROR mesmo, e do tipo mais pesado e violento, contendo algumas das imagens mais escabrosas que ele já filmou!


O filme conta a história do Dr. Frank Flamand (Helmut Berger), um renomado cirurgião plástico de Paris cuja luxuosa clínica pratica procedimentos nada ortodoxos nas clientes ricas: numa espécie de modernização da história da Condessa Elizabeth Bathory (aquela que se banhava no sangue de virgens para manter a juventude), o Dr. Flamand aplica nas madames transfusões do sangue de jovens garotas aprisionadas nas noites parisienses, e mantidas num moderno calabouço no porão da sua clínica!

Isso, entretanto, é um elemento bem secundário da trama, e logo abandonado: o verdadeiro foco de SEM FACE é em Ingrid (Christiane Jean), a irmã do médico, que, ao salvá-lo do ataque de uma ex-paciente frustrada, acaba recebendo um banho de ácido e tem o seu belo rosto destruído!


(Um parêntese: A cena do ácido, de tão mal-feita e mal-filmada, lembra momento parecido em "Inferno Carnal", de José Mojica Marins: após receber o ácido no rosto, a atriz usa as mãos para arrancar pedaços de látex da cara, como se fosse a pele queimada se soltando do rosto, mas nada acontece com os seus dedos, que em tese também estão em contato direto com o mesmo ácido!)


Sentindo-se culpado pela tragédia de Ingrid - com quem vive uma relação bem suspeita -, o Dr. Flamand resolve tentar um "transplante de rosto", usando aquela mesma prática de sequestrar vítimas inocentes pelas ruas de Paris para tentar encontrar uma nova face para a sua irmã.

Com a ajuda da bela cúmplice e amante Nathalie (Brigitte Lahaie, ex-atriz pornô e musa do diretor francês Jean Rollin), e de um truculento capanga mudo chamado Gordon (Gérard Zalcberg), o cirurgião plástico chega à "doadora" perfeita: a modelo Barbara Hallen (Caroline Munro, musa do diretor italiano Luigi Cozzi), cujo vício em cocaína faz com que ela seja facilmente atraída e aprisionada pelos vilões.


O problema agora é como fazer para dar o rosto da bela modelo a Ingrid. Depois de uma visita ao Dr. Orloff (Howard Vernon), um polêmico médico que tentou o mesmo procedimento no passado, Flamand e Nathalie chegam ao cirurgião alemão Karl Heinz Moser (Anton Diffring), que realizou inúmeras operações ilegais durante a Segunda Guerra Mundial, e através delas desenvolveu uma técnica para a retirada/implante de faces.

Mas Flamand e cia. não contavam com um pequeno problema: Barbara, a modelo sequestrada, é filha de um figurão de Nova York, Terry (Telly Savalas!!!). Preocupado com o súbito desaparecimento da filha, o magnata contrata um detetive particular, Sam "Big Mouth" Morgan (Christopher Mitchum, filho menos famoso de Robert Mitchum), para "virar Paris do avesso" e encontrar a garota.


SEM FACE não é o "típico filme de Jess Franco", ainda mais considerando as produções tosquíssimas que ele estava fazendo naquele período. A fotografia é bonita, mas também burocrática, sem aquelas maluquices tradicionais do diretor; já a quantidade de nudez e sacanagem é mantida num mínimo aceitável, fugindo daquelas suas produções estilo "Macumba Sexual", em que os atores e atrizes passavam o tempo todo pelados.

Na entrevista que acompanha o DVD importado do filme, Franco inclusive ressalta que o produtor ficava pedindo mais nudez e cenas de sexo, mas ele preferiu se segurar por achar que seria de mau gosto colocar putaria num filme com tantos atores famosos. Até Brigitte Lahaie, que não precisava de muito incentivo para tirar a roupa nas produções em que aparecia, está completamente vestida o tempo inteiro!


Assim, a grande atração é o "gore". E o resultado é o filme mais sangrento que Franco já fez, capaz de rivalizar até com o violento "Bloody Moon". O produtor Chateau não economizou neste departamento, e contratou o técnico francês Jacques Gastineau, que tinha no seu currículo a realização de máscaras e maquiagens para "Força Sinistra" (1985), de Tobe Hooper.

O resultado é exageradamente gráfico. Lá pelas tantas, uma vítima é morta com uma seringa enfiada no olho. Isso já foi mostrado antes em outros filmes (de memória, lembro de "Halloween 2" e "Os Mortos-vivos", ambos de 1981), mas não com tanto detalhismo: Franco filma um super-close da agulha entrando lentamente num olho falso, "vazando" o globo ocular, e mantém a câmera nessa imagem incômoda durante longos segundos enquanto o sangue sobe pela agulha para a seringa!


Também fazem parte do "cardápio" tesourada no pescoço, braços cortados com faconaço, cabeça decepada com serra elétrica e broca na testa, tudo produzido a partir de efeitos práticos - sabe, aquela coisa que existia antes da computação gráfica tomar conta do departamento. Às vezes, os "bonecos" usados para as cenas violentas ficam até mais visíveis do que deveriam, mas mesmo assim o resultado convence mais do que o sangue em CGI das produções modernas.

E Franco ainda filma não uma, mas DUAS cenas de retirada do rosto de vítimas diferentes, ambas mostradas em detalhes cirúrgicos (sem trocadilho), e ambas bastante eficientes e realistas. São momentos de virar o estômago, principalmente quando uma das operações dá errado e a pele começa a rasgar na hora da retirada - e com a "doadora" ainda viva, é claro!


O sadismo rola solto em SEM FACE, que está cheio de vilões terríveis praticando atos ainda mais terríveis. Com a maior tranquilidade do mundo, como quem está fazendo uma operação de rotina, o ex-nazista Dr. Moser pede que Nathalie aplique uma injeção de anestesia na garganta de uma vítima consciente, para impedir que ela fale ou grite de dor durante a retirada do seu rosto; depois, ele mostra o rosto arrancado para a própria "doadora", com a face agora reduzida a cartilagens, músculos e olhos que se movem sem pálpebras, e comenta: "Veja só como ela (Ingrid) vai ficar linda!".


Por falar em sadismo, SEM FACE tem uma final bem longe de ser feliz, numa daquelas conclusões filhas-da-puta à la "O Nevoeiro". (SPOILERS) O "herói" Morgan finalmente chega à clínica de Flanard e entra na cela para libertar Nathalie, que está amarrada, mas o casal é surpreendido por Nathalie, que fecha e tranca a porta. Apesar do detetive largar um daqueles blefes tradicionais ("A polícia sabe que estou aqui"), é claro que o coitado se deu mal e não avisou ninguém. E aí Flanard resolve eliminar todos os vestígios das suas experiências, incluindo as duas testemunhas, construindo uma parede para cobrir a porta da cela - sepultando Morgan e Nathalie vivos, num pesadelo digno de Edgar Allan Poe! E embora a última cena do filme dê alguma esperança ao espectador, quando o personagem de Telly Savalas ouve a última ligação do detetive em sua secretária eletrônica (em que ele diz que iria investigar a tal clínica), logo fica óbvio que já não há mais tempo de resgatar as duas vítimas com vida, pois a ligação foi feita no Natal e ouvida apenas depois do Ano Novo! (FIM DOS SPOILERS)


É possível encarar SEM FACE como uma modernização (neste caso, para os exagerados anos 1980) tanto de "Os Olhos Sem Face" quanto de "O Terrível Dr. Orloff", já que há elementos bem característicos de ambos aqui.

De "Os Olhos Sem Face", além das cenas gráficas de cirurgia facial, o filme pegou emprestada a bela assistente que auxilia o médico na busca de cobaias (Alida Valli lá, Brigitte Lahaie aqui), e o fato de Ingrid usar uma máscara inexpressiva para esconder o rosto deformado (como fazia a filha do cientista no filme de Franju) ao transar com um garoto de programa.

Já do seu próprio "O Terrível Dr. Orloff", Franco resgatou não apenas o personagem-título (como veremos mais adiante), mas também a presença de um assassino mudo como capanga: em 1961, este papel coube ao antológico Morpho, que era cego; aqui, é Gordon quem assume a tarefa, e, embora não seja cego, tem as sobrancelhas raspadas, o que lhe dá um ar bem sinistro.


SEM FACE também se encaixa na longa filmografia de Franco pela maneira como sexo, morte e perversão caminham juntos e de mãos dadas: Gordon não apenas estupra as prisioneiras na masmorra do Dr. Flamand, mas também manifesta tendências necrófilas em pelo menos dois momentos (ele guarda a cabeça decepada de uma vítima e a beija!); o Dr. Flamand nunca transa com suas vítimas, preferindo apenas excitá-las para depois deixá-las aos cuidados de Nathalie, e então sai de fininho para acompanhar a irmã (paixão incestuosa?) pelo circuito fechado de TV da clínica; por fim, há referências bem tímidas a submissão e sadomasoquismo.


O mais impressionante é o elenco que Franco e seu produtor reuniram para dar vida a esses personagens tão escrotos e/ou caricaturais. São nomes e caras conhecidas que defendem seus papéis com convicção, e às vezes nem parece que estão num terror-podreira dirigido por Jess Franco!

O eterno "Kojak" Savalas aparece menos de cinco minutos (suas cenas aparentam ter sido filmadas em algumas horas, e num único cenário), mas mesmo assim convence como o pai milionário preocupado com sua única e problemática filha - ele até ameaça chorar num momento em que fala dela para o detetive Morgan.


O austríaco Helmut Berger é uma grande surpresa, já que o homem geralmente era avesso a essas presepadas e fazia um estilo mais "refinado". Tá, ele é lembrado até hoje por ter feito um coronel nazista no sexploitation/nazisploitation "Salon Kitty" (1976), de Tinto Brass, mas também foi dirigido por famosões como Luchino Visconti (quatro vezes!!!) e Vittorio De Sica!

Por isso, a participação do ator empresta um ar de sofisticação ao filme, mesmo que às vezes fique visível um certo desconforto por parte de Berger, como se tivesse percebido tarde demais onde estava metido - e talvez seja proposital o fato de ele nunca se envolver nas cenas mais "pesadas", deixando o "trabalho sujo" para seus aliados, apesar de ser o grande vilão do filme. Mas SEM FACE não arranhou a carreira mais "certinha" de Berger, que três anos depois apareceria com certo destaque em "O Poderoso Chefão III", de Francis Ford Coppola.


Outra surpresa é a veterana Stéphane Audran, atriz e ex-mulher do diretor francês Claude Chabrol, no papel da dondoca que toma a seringada no olho! Não é o tipo de cena em que você imaginaria ver esta respeitável senhora, que antes havia participado de filmes vencedores do Oscar como "O Discreto Charme da Burguesia" (1972), de Luis Buñuel, e (no mesmo ano de 1987) "A Festa de Babette"! Segundo o que Jess Franco disse numa entrevista, Stéphane aceitou participar de SEM FACE por ser uma grande fã de filmes de horror, e por isso encarou numa boa até a cena da agulha no olho! Num mundo perfeito, divertidas participações como essa seriam mais frequentes.


Até Chris Mitchum, um canastrão de carteirinha, está menos mal que de costume no papel do detetive. Ele encarna Sam Morgan como um fanfarrão que está sempre fazendo piadinhas e espancando "suspeitos", (SPOILERS) mas perde totalmente a pose na conclusão, quando, ao perceber o tamanho da merda em que se afundou, fica sem palavras e só consegue olhar desesperado através do vidro da cela, que lhe impede de estrangular a malvada Brigitte Lahaie - enquanto a moça olha de volta com uma expressão ao mesmo tempo de triunfo e de desprezo! (FIM DOS SPOILERS)


Brigitte, por sinal, está ótima como enfermeira/amante/cúmplice do Dr. Flamand, exalando sensualidade e erotismo sem precisar mostrar um único peitinho (quem quiser conferir a performance da moça "sem censura", que procure um dos seus diversos pornôs!). Confesso que nunca achei a moça grande coisa, embora ela tenha um grande séquito de fãs apaixonados, mas aqui Brigitte realmente aparece deslumbrante.

Tem até uma cena em que, vestida de enfermeira, ela segura ameaçadoramente a seringa que enfiará no olho de uma vítima, e que me lembrou muito a pose e o visual de Daryl Hannah disfarçada de enfermeira em "Kill Bill". Terá Tarantino se inspirado em SEM FACE e Brigitte Lahaie? Não seria surpresa...


Já Caroline Munro, uma atriz normalmente limitada (embora muito gostosa), é a única que não tem muito a fazer, considerando que sua personagem passa o filme inteiro aprisionada à espera do transplante de rosto. É pouco para alguém que já foi Bond Girl, Drácula Girl (em alguns filmes de vampiro da Hammer) e até a lendária Stella Star, de "Star Crash".

Mas os fãs da moça vão gostar de saber que ela aparece quase o tempo todo de pernocas de fora (e às vezes com a calcinha à mostra). Era para ter pagado peitinho, numa cena em que é estuprada por Gordon, só que a atriz arregou e convenceu Franco de que a nudez não era necessária - e, infelizmente, Caroline venceu a discussão!


O elenco secundário de SEM FACE ainda envolve algumas curiosas brincadeiras cinematográficas. A principal delas é a referência ao Dr. Orloff, novamente interpretado por um envelhecido Howard Vernon, como se o médico tivesse sobrevivido ao final de "O Terrível Dr. Orloff" e à passagem das décadas.

Esta participação especial marca a última parceria entre Franco e Vernon, que morreu em 1996. Anos depois, no péssimo "Dr. Wong's Virtual Hell", Jess "homenageou" o amigo reaproveitando cenas de arquivo dele em "La Maldición de Frankenstein" (1972).


Outra divertida referência foi ter chamado o veterano Anton Diffring para o papel do cirurgião plástico doido e assassino, já que Diffring interpretou papel muito parecido em "Circo dos Horrores" (1960), de Sidney Hayers. Neste filme, ele fazia o Dr. Schuler, um cirurgião plástico fugido da Inglaterra que se disfarçava de dono de circo na França e operava garotas deformadas para dar-lhes um novo rosto e um emprego como artistas do picadeiro. SEM FACE também acabou sendo um dos últimos trabalhos do ator, que morreu em 1989.


Por fim, uma brincadeira bastante curiosa - e que geralmente não é mencionada nas resenhas sobre o filme - envolve a participação da atriz francesa Florence Guérin como... ela mesma!!! Numa cena, o Dr. Flamand assiste cenas do filme "The Click" (1985), de Jean-Louis Richard e Steve Barnett, estrelado por Florence, e mais tarde ele e Nathalie a encontram numa boate de Paris e resolvem sequestrá-la para ser o "rosto perfeito" de Ingrid!

Pois eis que Florence é representada como uma artista fútil e estúpida, que não se importa de seguir a dupla até a clínica com a promessa de um ménage a trois (ela até aparece de lingerie e dando umas bitocas em Brigitte Lahaie). Corajosa, a atriz também encara o papel de vítima, e tem o seu rosto retirado cirurgicamente. Não consigo lembrar de outro exemplo de atriz aparecendo "as himself" em cenas tão grotescas (e queima-filme), além da participação recente de Ashlynn Yennie, também como "ela mesma", em "A Centopeia Humana 2"!


Infelizmente, SEM FACE também tem diversas derrapadas. O fato de não ser um típico filme de Jess Franco pode representar vantagem para aqueles espectadores que confessadamente não curtem a obra do diretor, mas ao mesmo tempo é frustrante para os fãs do homem, pois em nada lembra os seus trabalhos mais inspirados e esteticamente ousados.

Em sua ânsia por tentar ser mais "popular", Franco se rendeu a uma estética pasteurizada que, se não fosse pelo gore, lembraria até um episódio de série de TV daquela época. Uma das críticas estrangeiras que li foi muito feliz ao apontar que, entre uma cena sangrenta e outra, o filme parece "um episódio ruim de Miami Vice". 


O que mais trava o filme são as cenas que envolvem as investigações de Morgan, e que caem naquele manjado clichê do "detetive americano falastrão arrancando informações na pancada" (e é incrível como o "herói" agarra praticamente todas as suas testemunhas pela gola da camisa para obter as respostas de que precisa!).

Isso conduz a um desajeitado momento cômico no nível "Zorra Total", quando Morgan vai "interrogar" um afetadíssimo fotógrafo gay e acaba tomando uma coça do amante dele, um bombadão que atende pelo carinhoso nome de... Doudou?!? Os dois saem na pancada e começam a demolir a sala de estar do dono da casa, que tem exagerados faniquitos do tipo"Ai não, o meu vaso ming!!!". É o tipo de bobagem que até diverte pelo inusitado, mas que não se encaixa de maneira alguma no clima do filme.


Porém o grande problema de SEM FACEé o fato de Franco dar mais ênfase aos vilões do que às vítimas, como já havia feito inúmeras vezes na sua filmografia (só para citar dois exemplos, em "Ela Matou em Êxtase" e "Jack the Ripper"). Isso compromete inclusive o final chocante, já que o espectador não poderia se importar menos com os "heróis" - um detetive truculento e sem-graça e uma filhinha-de-papai cheiradora e estúpida. O mesmo acontece quando a personagem de Caroline Munro é estuprada: devia ser algo horrível, mas a moça é tão descartável na trama que o espectador "nem tchums" pra ela!

E tem ainda uma insuportável baladinha pop-80's, cantada pelo canadense Vincenzo Thoma, que toca umas 50 vezes, numa verdadeira lavagem cerebral (prepare-se para cantar o trecho"Destination Nowhere / A half mile to Paradise" pelo resto da semana depois de ver o filme!).


Fechando um olho (ou um olho e meio) para essas barbeiragens, SEM FACE até que é um filme bem decente, principalmente comparando com as tralhas que o diretor estava fazendo no mesmo período com um décimo do orçamento.

Mas percebe-se claramente uma falta de segurança (e até de estilo) de Jess em dirigir uma produção mais refinada, e com algo próximo de um orçamento alto (também é possível que o produtor Chateau tenha influenciado bastante no resultado final do filme).

Talvez Franco funcione melhor no improviso, sem dinheiro, e trabalhando com seu tradicional "exército de Brancaleone", aqui limitado a participações especiais de Vernon e da esposa e musa Lina Romay (numa pontinha como esposa do Dr. Orloff, e trabalhando atrás das câmeras como diretora de 2ª unidade).


Mesmo assim, sempre é interessante ver como um diretor "underground" se sai dirigindo obras endinheiradas para atingir um público mais amplo. Tudo considerado, Franco não foi tão mal: algumas das coisas que eu apontei como defeitos certamente não farão nenhuma diferença para o público médio, aquele que só espera um terror sanguinolento típico dos anos 80 e não faz a menor ideia de quem seja Jess Franco.

Durante muito tempo, inclusive, SEM FACE foi uma das obras do diretor com melhor distribuição internacional (graças ao dinheiro de René Chateau). Também foi o último filme decentemente produzido de Jess, que a partir daqui faria um mergulho sem retorno nas produções de orçamento mínimo ou inexistente (tipo "O Massacre dos Barbys", em 1996), e nos filmes dirigidos em vídeo digital no seu próprio apartamento.

Ficaria até mais digno se Franco tivesse encerrado sua filmografia por aqui, em alto estilo, sem nunca ter embarcado naquelas presepadas digitais que fez a partir dos anos 2000. Mas como fazer cinema era a vida do cineasta espanhol, parar em SEM FACE provavelmente também representaria sua morte prematura em 1987, e não 2013.

PS: Não sei como foi o retorno nas bilheterias, mas René Chateau nunca mais produziu outro filme depois desse...


Trailer de SEM FACE



*******************************************************
Faceless / Les Prédateurs de la Nuit
(1987, França)

Direção: Jess Franco
Elenco: Helmut Berger, Brigitte Lahaie, Christopher
Mitchum, Caroline Munro, Telly Savalas, Anton
Diffring, Howard Vernon e Florence Guérin.

EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER (1983), LOS CRÍMENES DE USHER (1984) e REVENGE IN THE HOUSE OF USHER (1987)

$
0
0

Na longa filmografia do diretor Jess Franco, várias obras têm mais de uma versão circulando, com cenas a mais ou a menos, trechos com sexo explícito inseridos na montagem, inícios e finais diferentes, e por aí vai - dependendo do país em que cada uma foi lançada e do nível de picaretagem do respectivo produtor ou distribuidor. Isso dificulta bastante o trabalho de pesquisar a obra do espanhol, já que muitas vezes é preciso encarar até cinco montagens diferentes de um mesmo filme para conseguir ver tudo que foi filmado para aquele projeto.

Mas poucos filmes de Franco sofreram tanto com esse pesadelo das versões diferentes quanto EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER, uma adaptação minimalista do famoso conto "A Queda da Casa de Usher", de Edgar Allan Poe, que o diretor bancou com dinheiro do próprio bolso e rodou entre 1982 e 1983. Pois eis que hoje existem nada menos de TRÊS montagens completamente diferentes da obra, cada uma com novas cenas que alteram substancialmente a história!


O conto de Poe, "A Queda da Casa de Usher", foi publicado pela primeira vez em 1839. É narrado por um homem que viaja até um velho casarão, afastado da cidade, para encontrar seu velho amigo Roderick Usher, que lhe enviou uma carta pedindo ajuda. O narrador encontra um Usher paranóico e amedrontado, que acredita que sua casa teria adquirido "vida própria". No desfecho, a finada irmã de Usher, Madeline, que havia morrido algumas semanas antes e foi sepultada na cripta da família, reaparece ainda viva - ela tivera um ataque de catalepsia e foi dada como morta! Madeline abraça o irmão e ambos morrem fulminados pelo choque, e nesse momento a casa se parte no meio e desmorona, quando o narrador já está a uma distância segura.

"A Queda da Casa de Usher" foi adaptado pelo menos uma dúzia de vezes para o cinema, e duas delas são obrigatórias: o clássico francês de mesmo nome, dirigido por Jean Epstein em 1928, e a versão feita por Roger Corman, e estrelada por Vincent Price, em 1960 (rebatizada "O Solar Maldito" no Brasil). Curtis Harrington dirigiu ele mesmo duas adaptações em forma de curta-metragem, uma em 1942 e outra em 2000, Ken Russell fez uma versão autoral em 2002 ("The Fall of the Louse of Usher"), e até o infame David DeCoteau, famoso por seus filmes de terror afrescalhados com rapazes de cuequinha, adaptou o conto em "House of Usher" (2008), cujo pôster (acima) já diz tudo...

Quando Franco resolveu fazer sua própria versão do conto de Poe, já existiam sete outras - algumas produzidas para a TV, e até um desenho animado dirigido por Jan Švankmajer. Mesmo assim, o espanhol conseguiu fazer uma adaptação bastante original, que, da história em que se baseia, só tem mesmo o amigo de Usher que o visita e o final com a casa desmoronando após a morte do seu proprietário!


Se EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER tivesse sido um sucesso, provavelmente a carreira de Jess teria ganhado um outro rumo a partir daqui. Afinal, depois de produções baratas em que a sacanagem se sobressaía à trama (tipo "Macumba Sexual" e "La Mansión de los Muertos Vivientes"), esta aqui propunha um retorno àquele horror mais clássico dos seus primeiros filmes, como "O Terrível Dr. Orloff"(1961) e "O Sádico Barão Von Klaus" (1962).

Infelizmente, o filme não só foi um fracasso, mas um daqueles fracassos retumbantes! A versão do diretor foi exibida uma única vez, em março de 1983, no Imagfic - Festival Internacional de Cine Imaginario y de Ciencia-ficción de Madrid, na Espanha. Digamos que a reação do público não foi das melhores: os espectadores se dividiam entre rir escandalosamente ou vaiar do começo ao fim, e alguns debandaram do cinema em grupos, enfurecendo o diretor, que saiu berrando que eles não tinham entendido nada.

(Nos arquivos do jornal espanhol El País, é possível encontrar um dos raros registros públicos desse fiasco, uma reportagem intitulada "Risadas ao invés de horror em 'El Hundimiento de la Casa Usher'", escrita por Diego Galán e publicada em 24 de março de 1983).


A recepção fracassada de EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER acabou decretando o destino do filme, já que a partir de então nenhum distribuidor tinha interesse em gastar dinheiro lançando a obra nos cinemas, e Franco ficou com o filme parado e sem possibilidades de recuperar seu investimento!

Finalmente, em 1984, o diretor resolveu filmar algumas cenas novas envolvendo nudez e violência, acreditando que assim seria mais fácil distribuí-lo. Esta estratégia deu origem a uma segunda versão da obra, que ficou conhecida como LOS CRÍMENES DE USHER, e que algumas fontes indicam que teve um lançamento muito limitado nos cinemas de Madrid em 1986, enquanto outras alegam que jamais chegou a ser exibida.

Oficialmente, pelo menos, nenhuma destas duas montagens espanholas chegou a ser lançada, nem mesmo nas locadoras, e hoje a segunda (LOS CRÍMENES DE USHER) só circula numa cópia praticamente inassistível ripada de um velho VHS pirata (que teria sido obtido ilegalmente por um amigo de Jess, o ator francês Alain Petit).


Tentando recuperar o prejuízo, Jess ofereceu o corte original de EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER para seus parceiros de longa data Marius e Daniel Lesoeur, da pequena produtora/distribuidora francesa Eurociné. Eles toparam bancar a distribuição mundial da obra, mas desde que aquelas cenas de LOS CRÍMENES DE USHER fossem descartadas e, no lugar delas, Franco rodasse OUTRAS cenas novas, alterando completamente a trama e transformando-a numa espécie de refilmagem/atualização do clássico "O Terrível Dr. Orloff" (inclusive inserindo 15 minutos de cenas em preto-e-branco deste filme na montagem como se fossem flashbacks!!!)

Esta nova montagem (a terceira!), ficou conhecida como NEUROSIS - THE FALL OF THE HOUSE OF USHER, mas foi distribuída mundialmente com o titulo REVENGE IN THE HOUSE OF USHER, e foi a única das três que ganhou lançamento em vídeo, e mais recentemente em DVD.


Como a primeira versão (o corte original de Franco) nunca mais foi exibida desde aquela fatídica estreia em Madrid, hoje só podemos conjecturar sobre como ela seria, assistindo a única cópia ruim disponível de LOS CRÍMENES DE USHER e fazendo um esforço mental para "apagar" as novas cenas com assassinatos que foram inseridas.

Infelizmente, a belíssima fotografia - que é um dos pontos altos do filme - aparece completamente arruinada nessa cópia do VHS (que aparenta ser de segunda ou terceira geração, pela falta de qualidade), e o fato de as cenas originalmente serem bem escuras só piora a situação. Menos mal que o DVD da versão francesa traz as cenas em versão restaurada, permitindo pelo menos enxergar o que se passa (veja dois exemplos abaixo, na comparação da imagem da fita pirata com a do DVD da versão francesa).




Pois o que sobra, ao tirarmos os assassinatos da segunda versão e a bobajada à la Dr. Orloff da terceira, é um autêntico filme de "clima", em que tudo gira em torno da interpretação de Howard Vernon como Usher, dos barulhos estranhos e das sombras no interior da "Casa de Usher". Não há sustos, nem sangue. Numa entrevista da época, Jess declarou que tentava repetir o clima da história de Poe, "em que nada acontece durante a maior parte do tempo, apenas uns rangidos e sons estranhos da própria casa”.

Mesmo com a péssima qualidade do único vídeo existente, as duas versões espanholas da adaptação "Franquiana" de Edgar Allan Poe ainda são muito melhores do que a edição francesa picaretona REVENGE IN THE HOUSE OF USHER.

Vamos dar uma examinada nas versões existentes e comentar o quanto diferem umas das outras...



EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER / 
LOS CRÍMENES DE USHER


EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER começa com o jovem médico Alan Harker (Antonio Mayans, creditado como "Robert Foster") cavalgando até o castelo do Dr. Eric Usher (Howard Vernon), que foi seu professor e mentor anos antes na faculdade de medicina, e que mandou lhe chamar através de uma carta muito confusa.

Chegando à "Casa de Usher", Harker descobre que seu velho professor - que nem lhe reconhece - vive recluso com uma governanta (Lina Romay, aqui completamente vestida!), entre paranóico e amedrontado. Aos poucos, o jovem visitante começa a ultrapassar aquela barreira de medo e fazer com que Usher se abra; é quando o velho confessa que matou sua esposa, Edmunda (Fata Morgana), só que a "casa" trouxe a falecida de volta, como uma fantasma, para assombrá-lo.


Harker acredita que são apenas delírios do enlouquecido ex-professor. Mas, naquela noite, ele escuta barulhos estranhos pela casa e sai para averiguar. Numa masmorra, encontra primeiro Mathias (Antonio Marín), um criado de Usher, que diz que foi aprisionado pelo próprio patrão há dias; depois, ele vê um vulto que parece ser o de Edmunda, a tal esposa-fantasma; finalmente, Harker encontra o próprio Usher com o cadáver de uma garota aos seus pés, alimentando-se do sangue que pinga da faca! (Fica a dúvida se essa última parte já existia no corte original ou se é mais uma das cenas adicionadas na versãoLOS CRÍMENES DE USHER.)


O rapaz desmaia depois de tantas emoções, e a governanta trata de colocá-lo de volta na cama, onde ele acorda no dia seguinte acreditando que teve apenas um pesadelo. Mas Usher está determinado a ditar-lhe sua confissão, acreditando que não tem mais muito tempo de vida: "Esta casa e seus fantasmas estão me destruindo lentamente", observa.

A partir daqui, a trama se divide entre o ceticismo de Harker e os acessos de loucura de Usher, cuja saúde piora, fazendo com que ele passe a enxergar com mais frequência o fantasma da esposa. Será que esses fantasmas são apenas alucinações geradas pela atmosfera da própria casa, ou o Dr. Usher realmente é um assassino sendo atormentado pelo remorso - e pela sua própria casa, que ganhou vida para assombrá-lo?


Franco dirigiu EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER com uma das menores equipes da sua carreira: além dos colaboradores constantes Mayans e Vernon nos papéis principais, e da esposa Lina Romay em papel secundário, o elenco tem apenas mais duas ou três pessoas em participação-relâmpago, incluindo José Llamas (o "Bruce Lyn" de "La Sombra del Judoka Contra el Doctor Wong") e o compositor Daniel J. White (também autor da trilha) como o Dr. Seward, médico que acompanha o delicado estado de saúde de Usher - e cujo nome vem do personagem de "Drácula" de Bram Stoker. Já a equipe técnica não era muito maior: o próprio Franco dirigiu, produziu, escreveu o roteiro, editou (com o pseudônimo "Laura Arias") e foi diretor de fotografia e operador de câmera!

Fora isso, a fotografia do próprio diretor é realmente maravilhosa, fazendo belíssimo uso da luz natural e do contraste entre ela e as sombras dentro e fora da locação centenária. É um filme quase sem cores, cheio de preto (da escuridão e das sombras no interior do castelo) e laranja (da luz do sol nas cenas externas e dos minúsculos pontos de luz artificial nas internas). como você pode ver nas imagens abaixo. Em entrevistas da época, Franco mencionou o alemão F. W. Murnau, o diretor de "Nosferatu", como inspiração ao dirigir o filme.


Para a "Casa de Usher" foi usado o Castelo de Santa Catalina, em Sierra Morena, Espanha (hoje transformado num hotel). Efeitos sonoros variados dão a impressão de que a velha construção está rangendo e prestes a entrar em colapso a qualquer momento.

Quando isso acontece, infelizmente a representação não é das melhores: o diretor usou apenas movimentos de câmera e takes de milésimo de segundo de uma maquete pra lá de falsa para simular o desmoronamento do castelo, já que obviamente não tinha o dinheiro necessário para filmar uma cena de tal grandeza!


Não é difícil de entender a reação do público lá de 1983 a EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER: o filme realmente é bastante lento, silencioso e introspectivo (mesmo para os padrões de Franco!), e a quantidade limitada de personagens faz com que o show seja todo do veterano Howard Vernon, aqui numa interpretação notável de um homem dividido entre a loucura e o medo.

O problema é que não é fácil de simpatizar com o personagem de Usher, e o filme é todo dele, sem deixar muito espaço para os outros personagens. Harker, o jovem que teoricamente está na história para ajudá-lo, não faz muita coisa e acompanha o desenlace dos eventos apenas como espectador; o mesmo acontece com a governanta e o Dr. Seward.


Para piorar, a trama se conclui com um excesso de enigmas e perguntas sem resposta. Jess já havia feito isso várias vezes, mas aqui ele exagera na dose. Quem (ou o quê) é Usher afinal? Um assassino no fim da vida, remoído pelo remorso (que se manifesta através do fantasma das suas vítimas), um louco assombrado por alucinações geradas por uma casa assombrada, ou simplesmente mais um dos fantasmas da casa, que ainda não sabe que morreu, e, quando finalmente percebe, leva a própria "Casa de Usher" para o Além consigo? A conclusão insatisfatória deixa todas essas possibilidades no ar, portanto você pode escolher aquela que preferir.

Nas resenhas de "La Mansión de los Muertos Vivientes" e "Macumba Sexual", eu escrevi sobre possíveis influências de "O Iluminado", de Stanley Kubrick, nas obras de Franco do período. Bem, infelizmente ninguém nunca entrevistou o velho Jess sobre isso, mas EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER se parece muitíssimo com "O Iluminado", assim como é possível fazer um paralelo entre o Usher de Vernon e o Jack Torrance de Jack Nicholson, e como o isolamento de ambos num velho castelo/hotel dá origem a fantasmas que podem existir apenas na imaginação destes personagens!


Com o fracasso retumbante da única exibição de EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER, Franco resolveu rodar aquelas três novas cenas com assassinatos para a segunda versão, LOS CRÍMENES DE USHER, e isso acabou transformando o personagem-título numa espécie de assassino sobrenatural (algo que não fica bem explicado, num daqueles casos em que a emenda saiu pior que o soneto).

Como essas cenas adicionais foram filmadas apenas em 1984, o diretor já não contava mais com a locação original do castelo. A solução foi reutilizar apenas o astro Vernon, que aparece ao lado de algumas novas atrizes que interpretam antigas vítimas de Usher, em momentos que são recordações do personagem em seu leito de morte.

Assim, enquanto o corte original deixava no ar se o personagem era ou não um assassino, esta segunda versão não só confirma a hipótese como mostra Usher em ação - o que também afasta bastante o filme da história do conto de Edgar Allan Poe!


Uma das cenas novas aparece como uma espécie de prólogo: Usher está do lado de fora da casa de uma garota pedindo que ela o deixe entrar; com a recusa da garota, ele "atravessa" a janela como se fosse um fantasma, e então mata sua vítima a bengaladas! Os insistentes apelos do personagem por sangue ("Meus velhos ossos, minha carne, minha pele, precisam de você para continuar vivas!") transformam Usher em uma espécie de vampiro!

As outras duas cenas, que aparecem na montagem como flashbacks, mostram mais crimes cometidos por Usher no passado: o assassinato de uma prostituta (imagens acima) e de uma menina (imagens abaixo). Ambas são mortas a punhaladas, e Usher novamente aparece bebendo o sangue das vítimas diretamente da lâmina da faca!

(SPOILER) Franco também usou um simples efeito de "corte seco" na nova montagem para fazer o cadáver do Dr. Usher "desaparecer" na cena final, confirmando que ele era algum tipo de entidade sobrenatural ligada à casa, e não um homem, como na versão original. (FIM DO SPOILER)


Se estas cenas adicionais confirmam que o personagem-título é um assassino, por outro lado apenas reforçam aquelas perguntas que eu fiz lá atrás sobre a outra versão: quem (ou o quê) é Usher afinal? Pois LOS CRÍMENES DE USHER deixa bem claro que ele não é um homem comum, mas algum tipo de monstro (um vampiro? um fantasma? um morto-vivo?) que se alimenta de sangue e pode atravessar paredes.

E as cenas adicionais também deixam um furo bem evidente: por que um Usher que é meio fantasma, meio vampiro se importaria com as aparições da sua finada esposa, se ambos são criaturas do além? Mistérios, mistérios...

LOS CRÍMENES DE USHER teve um lançamento muito pequeno, e apenas na Espanha (embora, repito, algumas fontes indiquem que nem assim chegou aos cinemas), antes de Jess tentar empurrá-lo para a Eurociné para distribuição internacional. Os franceses, por sua vez, exigiram uma nova montagem do filme, distanciando-a ainda mais do conto de Poe. E foi assim que surgiu...



REVENGE IN THE HOUSE OF USHER


Segundo algumas fontes, esta terceira versão produzida pela Eurociné teria sido feita apenas em 1987 (ou seja, quatro anos DEPOIS da estreia da versão do diretor naquele festival de cinema em Madrid), para lançamento na França em maio de 1988!

A trama aqui é bem diferente, e construída com cenas novas e a redublagem das cenas antigas: Alan Harker chega à mansão do seu velho professor, como acontecia nos dois cortes antigos, mas não demora a descobrir que Usher está conduzindo terríveis experimentos para manter viva a sua filha, Melissa (Françoise Blanchard, que só aparece aqui).

A garota sofre de uma doença rara e necessita de constantes transfusões de sangue. Para garantir sua sobrevivência, Usher usa seu criado, Morpho (Olivier Mathot, de "White Cannibal Queen", que também só aparece nas cenas novas), para sequestrar belas garotas do vilarejo, cujo sangue é drenado nas masmorras do castelo para as transfusões que Melissa precisa!


O assassinato da esposa de Usher e o fantasma da falecida, que eram fatores importantes nas duas versões anteriores, aqui passam praticamente em branco, já que a nova trama dá muito mais destaque ao tratamento radical de Melissa na masmorra, aproximando REVENGE IN THE HOUSE OF USHER mais de "O Terrível Dr. Orloff" do que de "A Queda da Casa de Usher".

Até porque cerca de 15 minutos do filme de 1961 foram utilizados na edição, aparecendo como flashbacks em preto-e-branco quando o Dr. Usher conta para Harker que cometeu vários crimes nas últimas décadas para manter a filha viva - e, nesse momento, entram as cenas de "O Terrível Dr. Orloff", com ele e Morpho novinhos!


Nenhuma nova cena foi filmada com os atores principais Vernon e Mayans, mas seus diálogos originais foram dublados para o francês e permitiram alterar completamente a história. Se nas duas versões espanholas Usher confessava ao pupilo que tinha matado a esposa, e que vinha sendo assombrada por ela e pela própria casa, nos diálogos em francês ele simplesmente explica o tratamento radical de Melissa e como isso envolve o sacrifício periódico de belas garotas - e, aparentemente, mandou chamar o ex-aluno para que continue suas experiências, já que está velho demais para manejar o bisturi! (Veja as imagens abaixo, comparando EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER comREVENGE IN THE HOUSE OF USHER, para entender melhor.)


Usher confessa o assassinato da esposa e fala sobre assombrações
nos diálogos originais de "El Hundimiento de la Casa Usher"


Já em "Revenge in the House of Usher", o personagem fala sobre
suas experiências, a doença da filha e cita Morpho, dando início
aos flashbacks retirados de "O Terrível Dr. Orloff"!


As cenas novas envolvem apenas Françoise como Melissa, Mathot como um envelhecido Morpho (a maquiagem dos olhos ficou ainda pior que a do filme de 1961), Jean Tolzac como o criado Mathias (que era interpretado por outro ator na versão espanhola!!!) e mais algumas vítimas anônimas dos experimentos de Usher.

Howard Vernon nunca chega a contracenar diretamente com Melissa e Morpho, já que esses personagens só aparecem nas cenas novas. Mas, graças ao milagre da montagem, alguns dos enxertos foram colocados em locais estratégicos, permitindo que tanto Mayans quanto Vernon "participem" das novas cenas!


Veja as imagens abaixo: em EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER / LOS CRÍMENES DE USHER, havia uma cena em que Harker perambulava pela masmorra do castelo e testemunhava o dono da casa matando uma garota a facadas. Pois o habilidoso sujeito que reeditou o filme (o próprio Franco?) para fazer a versão francesa simplesmente usou esse trecho, eliminou os takes da garota morta e colocou, em seu lugar, as novas cenas com Melissa sendo "operada", como se Harker estivesse vendo Usher fazendo uma das transfusões necessárias para manter sua filha viva! Aí foi só redublar os diálogos para enganar qualquer um que não tenha conhecimento da versão antiga - a faca ensanguentada que Usher segurava nas cenas originais da versão espanhola até vaza num dos takes, mas é praticamente imperceptível. Comparar esses momentos de EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER e REVENGE IN THE HOUSE OF USHER certamente vale por um mês de aula de edição em faculdade de cinema!

Harker desce até a masmorra e testemunha Usher matando uma garota nas cenas originais de "El Hundimiento de la Casa Usher"


Já em "Revenge in the House of Usher", graças ao milagre
da edição, Harker encontra Usher fazendo experiências com a sua filha e uma pobre vítima! Repare que os atores não aparecem diretamente nos novos takes do "laboratório", e na faca ensanguentada vazando em uma das imagens!


A conclusão é praticamente a mesma das versões espanholas, mas aqui também vemos (SPOILER) uma rápida cena nova com Morpho abraçando Melissa durante o desmoronamento do castelo. (FIM DO SPOILER)

No fim, REVENGE IN THE HOUSE OF USHER sofre do mesmo problema daquelas montagens picaretas de Godfrey Ho, o sujeito que fazia aventuras de ninjas usando cenas de velhos filmes sem ninjas: o conjunto nem sempre "fecha", e o editor precisa fazer malabarismos que às vezes não funcionam para linkar as cenas antigas com as novas.


Considerando que a versão original do filme já era arrastada, essa aqui, com quase 20 minutos a mais, beira o insuportável. Sim, as cenas antigas de "O Terrível Dr. Orloff" são ótimas, mas no contexto em que foram realizadas! Não faz sentido repetir 10 ou 15 minutos delas aqui como flashbacks, ou "remendões"! Sem contar que estas cenas não têm ab-so-lu-ta-men-te nada a ver com o universo de "A Queda da Casa de Usher", ou de Edgar Allan Poe!

Visto com bom humor, o filme até funciona como homenagem, mas neste caso podiam ter mudado também o título do filme para "Revenge in the House of DR. ORLOFF", e aí faria mais sentido como uma espécie de sequência da obra de 1961. Como se o personagem tivesse sobrevivido à conclusão do original e, agora envelhecido, confessasse seus crimes a um jovem pupilo. Mas não, preferiram transformar Orloff em Usher, apenas para poder usar o nome de Poe no pôster do filme. Bah!


Um ponto positivo de REVENGE IN THE HOUSE OF USHER é que a trama ficou mais redondinha, sem deixar várias possibilidades no ar, como as versões anteriores. Aqui Usher é um cientista louco e assassino confesso, que vem matando garotas há décadas na tentativa de prolongar a vida da filha. Mas mesmo assim há um detalhe que não faz sentido na trama: a fantasma da esposa de Usher! Por que ela apareceria para assombrar o personagem, ao invés de todas as garotas que ele matou em seus experimentos? O contraste entre ciência macabra e sobrenatural (fantasmas) não ficou bom, e talvez tivesse sido melhor cortar as cenas da esposa falecida desta versão...


A inclusão das novas cenas também gerou uma série de erros de continuidade. Por exemplo, no início vemos todo um trecho novo em que Morpho e Mathias (interpretado pelo francês Jean Tolzac) levam uma vítima para a masmorra; em seguida, Harker encontra Mathias aprisionado numa cela (e dessa vez interpretado pelo ator espanhol das cenas antigas, Antonio Marín!!!), dizendo que foi preso pelo Dr. Usher injustamente; mais adiante o criado está solto outra vez nas cenas novas (e interpretado pelo ator francês), e finalmente volta a aparecer preso (e "espanhol") quando Harker resolve libertá-lo nas cenas antigas! É de dar um nó no cérebro...

Mathias é interpretado por Antonio Marín (1ª foto) nas cenas da versão espanhola e por Jean Tolzac (2ª foto) na francesa,
e acharam que ninguém ia perceber a diferença!


Das três versões existentes da mesma obra, REVENGE IN THE HOUSE OF USHER com certeza é a pior. Por isso, soa até irônico o fato de ser a única a ter ganhado lançamento em VHS e DVD (até no Brasil, onde saiu recentemente, apenas em DVD, como"A Queda da Casa de Usher").

O mais interessante de analisar as três versões uma após a outra (além da chance de testemunhar o poder da montagem cinematográfica, claro) é constatar como cada uma dá um tom diferente ao conto e ao personagem de Poe, transformando Usher, respectivamente, em um homem paranóico/atormentado como o da história original, um assassino sobrenatural e um cientista louco que tenta prolongar a vida da filha (mais Dr. Orloff do que Usher!).


O triste destino de EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER teve um duro efeito em Jess Franco, e todos os seus filmes a partir de então são obras mais comerciais, voltando àquela dobradinha "sexo + violência" (até chegar à fase experimental e quase pornográfica do vídeo digital, a partir dos anos 2000). Hoje só podemos imaginar o que viria pela frente, caso sua adaptação original de Poe tivesse uma outra recepção, incentivando-o a voltar à pegada mais clássica dos seus primeiros trabalhos.

Inclusive Franco nunca aceitou o fracasso da sua primeira versão do filme. Numa entrevista para o livro "Obsession: The Films of Jess Franco", ele declarou:"Eu quis fazer um filme expressionista. Sabia que não ia funcionar e que não seria um filme comercial, mas era como eu achava que devia fazer. Quer dizer, em 20 anos quem sabe as pessoas descubram o filme maravilhoso que é, mas não acho que isso vá acontecer agora".


E assim, mais uma vez, Jess comprovou que era um visionário: desde os anos 2000, mais ou menos, pesquisadores da obra do diretor como Tim Lucas, Roberto Curti e Robert Monell vêm escrevendo maravilhas sobre a versão original EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER, vendo nela o que o público não viu naquela derradeira sessão no festival de Madrid em 1983, e fazendo campanhas para que a "director's cut" seja finalmente lançada em DVD/blu-ray.

Mas, como a única cópia existente do filme está (aparentemente) perdida, é possível que o "verdadeiro"EL HUNDIMIENTO DE LA CASA USHER nunca mais encontre o seu público...


Trailer de REVENGE IN THE HOUSE OF USHER



*******************************************************
El Hundimiento de la Casa Usher /
Los Crímenes de Usher (1983, Espanha)

Direção: Jess Franco
Elenco: Howard Vernon, Antonio Mayans (aka
Robert Foster), Lina Romay, Daniel J. White,
Antonio Marín, Fata Morgana e José Llamas.


Los Crímenes de Usher (1984, Espanha)
Direção: Jess Franco
Elenco:
Todos os anteriores mais Flávia Hervás
Ana Galán e Helena Garret.

 
Neurosis - The Fall of the House of Usher /
Revenge in the House of Usher
(1987, Espanha/França)

Direção: Jess Franco
Elenco: Os mesmos da 1ª versão mais Olivier
Mathot, Françoise Blanchard, Jean Tolzac,
Valerie Russel e Analía Ivars.

VÊNUS EM FÚRIA (1969)

$
0
0

(Foi a Continental Vídeo que prestou o desserviço de traduzir "Venus in Furs" como VÊNUS EM FÚRIA no Brasil, ao invés de "Vênus Vestindo Peles" ou"Vênus num Casaco de Pele", como manda a ortografia e o bom senso. Esqueçam, portanto, esta tradução bisonha: a partir de agora, irei me referir ao filme somente pelo título em inglês, VENUS IN FURS! Chupa, Continental!!!)

Numa praia da Turquia, o jazzista norte-americano Jimmy Logan faz um buraco na areia e desenterra uma caixa, onde está o seu velho trompete. Enquanto recupera o instrumento e começa a soprar as primeiras notas, sua narração em off revela um misto de desorientação e perda de memória: "Tudo começou no ano passado, perto de Istambul, na costa do Mar Negro. Ou pelo menos eu acho que foi assim. Tentei lembrar porque tinha enterrado meu trompete, porque isso é o mesmo que enterrar a mim mesmo. Músicos irão entender, um músico sem seu trompete é como um homem sem palavras". Logo, seus devaneios são interrompidos por um vulto no horizonte, um cadáver que está sendo trazido para a margem pelas ondas do mar. Ele corre (em câmera lentíssima) até o local e se depara com o corpo nu e cheio de cortes de Wanda Reed, uma bela mulher que ele lembra de ter conhecido algum tempo antes, numa festa em que trocou trompete (aquele mesmo que acabou de desenterrar)...


É dessa maneira enigmática que começa VENUS IN FURS, o filme mais "Hitchcockiano" de Jess Franco, e por isso mesmo considerado um dos melhores títulos da sua longa filmografia. Como muitos trabalhos assinados pelo diretor espanhol na mesma época, este também enfrentou problemas de pré e pós-produção, e no fim o resultado ficou completamente diferente do que havia sido planejado no início!

Em várias entrevistas, e inclusive naquela que acompanha o DVD importado do filme, Jess explicou a gênese de VENUS IN FURS: uma conversa que ele teve certa noite com o trompetista de jazz Chet Baker num clube em Paris."Ele me disse: 'Quando você faz um solo, você está sendo inspirado por alguma coisa. Pode ser alguém que você ama ou alguém que está no mesmo local. E, enquanto você toca, tem aquela impressão de que está vivendo alguma coisa irreal, uma história de amor que nunca viveu, ou experiências maravilhosas do tipo que só acontecem em sonhos. E você se sente como quando dizem que um homem, ao morrer, vê a sua vida inteira, os seus desejos, tudo, passar num flash pelos seus olhos. E então o solo termina, você levanta a cabeça e percebe que se passaram apenas três minutos! Aquilo só aconteceu dentro de você!'. E eu achei esta ideia incrível".


A partir dessa conversa, Franco escreveu o roteiro de uma história de amor surreal entre um trompetista negro (que seria baseado no legendário músico real Miles Davis) e uma bela garota branca. A pegadinha é que, no final, seria revelado que tal romance acontecia apenas na imaginação do músico, mais ou menos como aquela história que ele ouviu de Chet Baker sobre como a mente voa longe quando se executa um solo de trompete...

Na época, os filmes de Jess estavam sendo bancados pelo inglês Harry Alan Towers, um grande fã do clima lisérgico de "Necronomicon" (que Franco dirigiu em 1967), e que ficou animadíssimo com a possibilidade de financiar mais uma produção na mesma linha, baseada em sonhos e delírios. Mas os problemas começaram bem cedo: Towers fechou uma co-produção com a norte-americana AIP, que começou a mexer e remexer na história para torná-la "mais comercial".


Assim, o que inicialmente seria a história de um músico negro vivenciando fantasias de amor com uma garota branca acabou se tornando a busca de um trompetista branco por uma mulher dos sonhos também branca, ao mesmo tempo em que tem uma relação fugaz com uma garota negra!

Franco deu detalhes sobre esta "transformação" nos extras do DVD importado de VENUS IN FURS: "Os co-produtores disseram que o público norte-americano não estava preparado para ver um homem negro com uma mulher branca na cama! Mas o engraçado é que estava tudo bem no caso de um homem branco dormindo com uma mulher negra! E como eu estava proibido de colocar um negro e uma branca, minha história original já era, tivemos que reescrevê-la e contar uma outra história!".

(Ironicamente, no mesmo ano de 1969 chegou aos cinemas o western "100 Rifles", de Tom Gries, considerado o primeiro filme "comercial" a mostrar uma cena de sexo interracial, entre o negro Jim Brown e a branca Raquel Welch!)


E dessa maneira meio aloprada, cheia de restrições e adaptações, nasceu uma pequena pérola do cinema fantástico, que, mesmo com defeitos inegáveis (conforme veremos em seguida), merece um lugar de destaque entre os grandes trabalhos do diretor - e também é um dos seus títulos mais conhecidos, mesmo por quem NÃO viu o filme!

A "Vênus em Casaco de Pele" do título original é ninguém menos que a delicinha Maria Rohm, uma bela austríaca que, à época, estava na flor dos 23 aninhos. Ela era esposa do produtor Towers e "entrava no pacote" dos filmes em que ele colocava a mão: apareceu em oito dos nove títulos dirigidos por Jess que o maridão financiou, e sempre com papel de destaque (foi dispensada apenas de "The Castle of Fu Manchu").

Inclusive existe um boato (reproduzido pelo livro "Perverse Titillation: The Exploitation Cinema of Italy, Spain and France", de Danny Shipka) de que Towers costumava usar os atributos sexuais da moça para assegurar a participação de co-produtores endinheirados em seus projetos...


Fofocas à parte, voltemos à trama de VENUS IN FURS: depois que Jimmy desenterra seu trompete e encontra o cadáver nu de Wanda na praia, ocorre um rápido flashback em que o músico lembra do seu primeiro encontro com a garota, dias antes. Ele estava tocando numa festa para playboys quando a linda loira chegou vestindo um deslumbrante casaco de pele, numa entrada em cena literalmente cinematográfica (Franco faz questão de usar vários takes mostrando todos os convidados da tal festa "congelados no tempo", como se a chegada da "Venus in Furs" tivesse literalmente feito o universo parar!).

Não demora para a moça ser cercada por três dos endinheirados: o comerciante de arte Percival Kapp (interpretado por Dennis Price); a fotógrafa de moda - e lésbica - Olga (Margaret Lee), e o ricaço árabe Ahmed (Klaus Kinski?!?), que é adepto da prática do sadomasoquismo. O trio leva Wanda para uma salinha isolada do casarão, provavelmente para fazer uma grande suruba, certo?


Só que Jimmy dá um tempo no trompete e sai para fumar um cigarrinho; espiando por uma janela, testemunha a verdade sobre a "suruba" dos ricaços: na verdade, o que acontece é uma brutal sequência de tortura seguida de assassinato, em que a pobre Wanda é abusada sexualmente, chicoteada por Olga e finalmente apunhalada até a morte por Ahmed, que, para completar, bebe o sangue da vítima enquanto Kapp assiste! O músico também observa tudo enojado e perplexo, mas sem reagir.

A partir de então, remoído pela culpa de não ter movido um dedo para salvar a bela loira, o trompetista resolve sair numa jornada de "auto-descobrimento" junto com a namorada, a cantora negra Rita (Barbara McNair). E a coitadinha acaba ficando em segundo plano enquanto Jimmy é assombrado pelas suas memórias, durante a viagem que leva o casal primeiro para o Rio de Janeiro (!!!) em pleno Carnaval, e depois de volta para Istambul.


Nas duas cidades, enquanto toca em clubes e festas particulares, Jimmy começa a ver a finada Wanda em meio ao público, sempre vestindo seu indefectível casaco de pele. Nas duas cidades, também, os carrascos da moça - Kapp, Olga e Ahmed - começam a sofrer mortes misteriosas. Seria uma vingança do além-túmulo, ou Wanda na verdade nunca morreu e está aproveitando a fama de "fantasma" para dar o troco? Ou é tudo coisa da imaginação do pobre Jimmy?

Lembrando um "Necronomicon" menos artístico (e menos pretensioso), mas com uma estrutura narrativa semelhante, VENUS IN FURS se desenrola de uma forma propositalmente confusa, como se fosse tudo um grande pesadelo ou delírio do protagonista. Na conclusão "circular", que o leva de volta à beira da praia onde o filme começou, tudo finalmente passa a fazer sentido: (SPOILERS) o corpo levado pelas ondas não é o de Wanda, mas sim do próprio Jimmy, que, morto por afogamento desde o início do filme, viu sua vida toda passar num flash pelos seus olhos. Ou então imaginou tudo, como na história que Chet Baker contou para Franco - o espectador que decida qual hipótese prefere. O famoso final do "protagonista que está morto mas não sabe disso" virou clichê recentemente graças a filmes como "Alucinações do Passado" (1990) e "O Sexto Sentido" (1999), mas ainda era uma grande novidade à época, embora uma conclusão parecida tenha aparecido em "Carnival of Souls" (1962). (FIM DOS SPOILERS)


(MAIS SPOILERS) Vale ressaltar, também, que uma cena anterior em que o protagonista descobre que Wanda está realmente morta - ao encontrar seu casaco de pele jogado em frente a uma lápide com o nome da falecida, num cemitério de Istambul - lembra bastante uma lenda urbana que é popular até hoje, sobre um sujeito que acompanha uma bela garota para casa após um baile, e oferece seu casaco à moça para protegê-la do frio. No dia seguinte, ao voltar para o mesmo endereço em busca da amada, ele encontra um cemitério no lugar da casa dela, e seu casaco sobre uma lápide com a foto da moça da noite anterior! E aí, o que terá surgido primeiro: VENUS IN FURS ou esta lenda urbana? (AGORA SIM, FIM DOS SPOILERS)


O "herói" Jimmy é interpretado pelo ator norte-americano James Darren, de "Os Canhões de Navarone", mais conhecido à época como o Dr. Tony Newman do seriado "Túnel do Tempo". Franco destacou, em entrevista, que o ator não era a sua primeira opção para o papel, mas que ficou feliz com a escolha ao descobrir que Darren não apenas sabia tocar trompete, mas também conhecia Chet Baker, o músico que "inspirou" a história do filme.

Embora Darren apareça na maior parte das cenas, quem rouba o show é Maria Rohm como a misteriosa "Venus in Furs". O filme nunca explica o quê exatamente é a personagem (uma ameaça sobrenatural verdadeira ou apenas a personificação da culpa e do remorso agindo sobre os seus assassinos?), mas isso faz parte do charme da coisa toda. É o tipo de figura complexa que, como Janine Reynaud no anterior "Necronomicon", faz o espectador coçar a cabeça até o final, tentando entender o que exatamente está acontecendo.


A atriz (cujo nome de batismo é Helga Grohmann) está um espetáculo como a silenciosa vingadora de casaco de pele, uma mulher forte, sensual e independente, que usa o próprio corpo como "arma". Enfim, uma personagem bem típica do cinema de Franco, já vista antes em "Miss Muerte" e "Necronomicon", e depois numa infinidade de outros filmes, entre os quais destaco "Ela Matou em Êxtase".

VENUS IN FURS é possivelmente o melhor trabalho de Maria com Jess na direção. Sua carreira no cinema misteriosamente não foi muito além dessa parceria de oito filmes com o diretor espanhol, e encerrou em 1976. Seu último trabalho de destaque foi "O Último dos Dez" (1974), uma adaptação do clássico "O Caso dos Dez Negrinhos", de Agatha Christie. Ela continuou ao lado do produtor e maridão Towers (inclusive atuando como co-produtora dos filmes dele durante um curto espaço de tempo) até a morte deste, em 2009.


Já Klaus Kinski aparece pouco, mas mesmo assim, como sempre, consegue deixar sua marca. O curioso é que seu personagem é árabe (?!?), e ele até aparece vestido como sultão em algumas cenas, o que definitivamente não combina muito com o estilão do ator. Quando ele pega uma adaga e começa a abrir talhos no corpo nu de Maria Rohm (de mentirinha, claro), o espectador já espera pelo pior, dada a fama de maluco de Kinski!

Outro destaque entre os algozes de Wanda Reed é o veterano Dennis Price, que, como se sabe, nesta altura da carreira tinha o hábito de gravar suas cenas completamente bêbado. Franco confirma isso na entrevista no DVD importado de VENUS IN FURS, mas também argumenta que o ator era incrivelmente profissional, mesmo mamado, e que por causa disso eles trabalharam juntos mais vezes (em "Dracula Contra Frankenstein", "Vampyros Lesbos" e outros). Num momento em que o personagem de Price surta na cama, delirando com imagens da finada Wanda, é impossível não imaginar que ele deve estar sob forte influência etílica...


Tendo um personagem principal que é músico, e uma trama que se passa quase que inteiramente em festinhas e clubes de jazz, VENUS IN FURSé praticamente um musical, com inúmeros interlúdios em que vemos James Darren tocando ao lado do próprio Franco (no trombone e no piano!), e de músicos "reais" do calibre do britânico Manfred Mann e sua banda.

Barbara McNair, que também era cantora na vida real (ela cantou uma das músicas da trilha de "99 Mulheres", outra produção de Franco e Towers), aqui aparece como atriz, mas tem a oportunidade de demonstrar seus dotes vocais em duas cenas, e principalmente no refrão da canção-título ("Venus in Furs will be smiling"), repetido sempre que Wanda se vinga de um dos seus algozes.


VENUS IN FURS
não é considerado um "Franco Hitchcockiano" por acaso ou exagero: além de a trama buscar sua principal inspiração em "Um Corpo que Cai" (a exemplo de Kim Novak naquele filme, Maria Rohm, aqui, também é uma mulher que "vive duas vezes"), é possível pescar referências a vários outros trabalhos do inglês, como "Festim Diabólico" (o crime cometido por riquinhos durante uma festa) e "Janela Indiscreta" (a personagem da fotógrafa voyeur que praticamente transa com Wanda pela lente da sua câmera fotográfica). Sem contar que Maria Rohm lembra uma autêntica "loira de Hitchcock"! Por isso, é uma pena que ninguém nunca tenha questionado Jess sobre o assunto"homenagens a Hitchcock em VENUS IN FURS"enquanto ele ainda estava vivo...


Já os fãs de David Lynch provavelmente ficarão assombrados com o quanto VENUS IN FURS lembra o posterior "A Estrada Perdida" (1995): ambos os filmes têm como protagonista um músico de jazz (Darren no trompete aqui, Bill Pullman no sax no filme de Lynch) e uma garota que supostamente morreu e "ressuscitou" (Maria Rohm aqui, Patricia Arquette em "A Estrada Perdida"). O clima bizarro dos dois filmes também é bem parecido, embora Lynch puxe mais para o medo e para o horror, enquanto Franco prefere ficar numa abordagem mais "erótica".


Além dos problemas com a mudança da cor da pele dos personagens principais, Franco deve ter enfrentando muitas outras dificuldades durante as filmagens, já que VENUS IN FURS tem a maior cara de ter sido "corrigido" (ou pelo menos muito alterado) na pós-produção. Os créditos finais informam o nome dos prováveis culpados: Robert e Harry Eisen, responsáveis pela "supervisão de pós-produção".

A chatíssima e redundante narração em "off" de James Darren não parece ser coisa do diretor. Na opinião do pesquisador Tim Lucas, ela teria sido incluída pelos distribuidores norte-americanos de última hora (e sem participação de Jess), para deixar a história mais "redondinha" para o público americano, externando as dúvidas e conflitos do protagonista.

Os créditos iniciais citam Malvin Wald (que trabalhava em seriados de TV nos Estados Unidos) como um dos roteiristas, e é possível que ele tenha sido o responsável por escrever os "offs" de Darren -"Muito americanizados para terem sido escritos por Franco", segundo Lucas.


Nos créditos, a edição do filme é assinada pelo próprio Franco, mas ele disse que VENUS IN FURS também ganhou uma nova montagem nos Estados Unidos, com a inserção de diversos efeitos especiais "psicodélicos", tipo filtros e cores chapadonas, para lhe dar um clima parecido com o do anterior "Necronomicon".

"Mexeram em várias coisas depois de mim, mas eu não concordo com essas mudanças e não gosto delas", resumiu Jess, na entrevista para o DVD do filme. Esses efeitinhos doidões teriam sido cortesia de Michael Pozen, o mesmo sujeito que na época editava o show de TV da banda The Monkees, e que montou o filme "Os Monkees Estão de Volta" (1968), onde aparecem umas viagens bem parecidas!


Para piorar, há um excesso de cenas de arquivo reaproveitadas na montagem, e nem sempre com resultado positivo, provavelmente para tapar buracos na narrativa, fechar o tempo de um longa ou mesmo para permitir a inserção dos incontáveis "offs" do protagonista. O fato de parte da trama se passar no Rio de Janeiro, por exemplo, é mera desculpa para a reutilização das cenas de Carnaval (acima) filmadas por Jess para o anterior "A Garota do Rio", e que dão um desajeitado (e desnecessário) tom documental ao filme.

Até porque nunca vemos os personagens de VENUS IN FURS interagindo com cenários brasileiros, e isso simplesmente porque ELES NÃO VIERAM PARA CÁ! O cúmulo da picaretagem acontece quando utilizam um take em close de James Darren sobreposto às imagens antigas do Carnaval, tentando passar a ideia de que ele está na passarela assistindo aos desfiles (abaixo)!!!


Mais adiante, numa cena de lesbianismo entre Maria Rohm e Margaret Lee, também foram reaproveitados uns takes meio granulados de uma cena de sexo entre a mesma Maria Rohm e uma outra atriz (Rosalba Neri) no anterior "99 Mulheres", reaproveitados na montagem aqui talvez porque o material original não era tão ousado quanto os distribuidores queriam...

Por fim, consta que Jess foi obrigado a transformar seu filme em VENUS IN FURS na metade do caminho, e quando já estava filmando! Originalmente, o projeto se chamava "Black Angel", título condizente com aquela ideia original do diretor de um romance interracial. Mas logo surgiu a ideia dos distribuidores (sempre eles!) de rebatizar o filme como VENUS IN FURS para tentar forçar uma relação com o famoso livro de mesmo nome, escrito pelo austríaco Leopold von Sacher-Masoch em 1870.


O problema é que a trama que estava sendo filmada não tinha absolutamente nada a ver com o livro (além da presença de uma personagem feminina chamada Wanda). A solução para poder usar o novo título sem que ele parecesse excessivamente enganoso foi simplesmente filmar um montão de cenas novas com Maria Rohm vestindo seu casaco de pele!

"Eu disse a eles [distribuidores] que não iria mais mudar a história, mas concordei em colocar essa garota dos sonhos do trompetista vestindo casaco de pele, para justificar o título, e nada mais", confirmou Jess na entrevista para o DVD, dizendo também que odeia o título VENUS IN FURS (embora seja um dos mais populares da sua filmografia!).


Ironicamente, este acabou sendo o terceiro filme com este título num espaço de poucos anos: o primeiro "Venus in Furs" foi dirigido pelo nova-iorquino Joseph Marzano em 1967, e o segundo pelo italiano Massimo Dallamano no mesmo ano, 1969. Ambos são filmes eróticos softcore. Mais recentemente, "Venus in Fur" (no singular) virou título do novo filme de Roman Polanski!

Como já havia acontecido com "Necronomicon", VENUS IN FURS ganhou uma montagem completamente diferente na Itália, a cargo do famoso Bruno Mattei! Esta versão (pôster ao lado) foi rebatizada "Paroxismus: Può una Morta Rivivere per Amore?"(o título não deixa nada para a imaginação), e é radicalmente diferente da original, inclusive com um outro final. (SPOILERS) A versão italiana termina um pouco antes da "normal", quando Jimmy descobre que Wanda está morta, mas sem a parte em que o músico conclui que ele mesmo também está morto. Assim, o protagonista continua vivinho da silva e termina o filme tocando a música-tema no seu trompete à beira da praia, melancólico pela perda da fantasmagórica amada! (FIM DOS SPOILERS)

O mais interessante é que a montagem italiana altera a ordem dos acontecimentos, elimina todas as cenas de arquivo do Carnaval e insere algumas novas que não foram aproveitadas na edição oficial (tipo uma em que Jimmy liga para a polícia para avisar sobre o corpo encontrado na praia), além de trazer alguns takes mais longos (aqui Olga comete suicídio fazendo três cortes no próprio pulso com uma gilete, e não um só). Ao mesmo tempo em que tira alguns daqueles efeitos psicodélicos que enfureceram o diretor, Mattei também enche outras cenas (aquelas em que Wanda se vinga dos seus assassinos) com efeitos ópticos ainda piores, tipo caleidoscópio, que mal permitem ver o que está acontecendo (confira nas imagens abaixo)!


Logo, VENUS IN FURS era um filme que merecia desesperadamente uma "director's cut", o que infelizmente nunca mais acontecerá, agora que o pobre Jess Franco bateu as botas. A remontagem italiana dá uma bela ideia de como a narrativa fluiria bem melhor sem aquele excesso de "stock footage" (as cenas de Carnaval são totalmente dispensáveis). Mas também seria preciso ter acesso às cenas estendidas e alternativas que foram aproveitadas por Mattei, já que elas não aparecem em nenhuma outra cópia (e nem como extras no DVD hoje existente do filme). Sem a narração do personagem principal, também, a narrativa ficaria mais silenciosa e introspectiva (em suma, típica do diretor), sendo conduzida basicamente pelo jazz, já que a música é praticamente onipresente ao longo do filme.


E se VENUS IN FURS poderia ser um filmaço limando-se todas essas gordurinhas, como está hoje continua sendo um belíssimo filme. Imperfeito, sim, mas muito mais acessível e divertido do que o anterior "Necronomicon" (a narrativa não-linear e esquisitona de ambos é bem parecida, porém me parece funcionar de forma mais eficiente aqui).

Sexo e nudez aparecem em doses mais econômicas - o oposto dos filmes no limite do pornográfico que Jess faria a partir dos anos 1970 -, e o uso desses elementos nunca é vulgar ou apelativo.

Como vários títulos desta primeira fase da filmografia de Jess, é impressionante o cuidado com a composição das cenas e com o visual do filme, que está cheio de cores fortes e enquadramentos exóticos.


Detratores da obra de Franco ficariam sem argumentos diante de belíssimos momentos como aquele em que Wanda, seminua, desce uma escadaria arrastando seu casaco de pele por um carpete em vermelho tão vivo que lembra um mar de sangue! Ou a já citada cena da morte de Dennis Price, que acontece numa sala cheia de espelhos de vários tamanhos, e por onde a câmera de Jess filma "fragmentos" do que está acontecendo.

Em entrevista recente, o diretor declarou que VENUS IN FURS era um dos poucos trabalhos próprios que ele salvaria de um incêndio, ao lado dos anteriores "Necronomicon" e "Miss Muerte". E justificou: "Porque são os mais sinceros".


Analisando este aqui especificamente, não é difícil de entender o carinho do diretor. Afinal, mesmo com as inúmeras alterações na história original e com as cagadinhas na edição, VENUS IN FURS ainda tem tudo aquilo que Jess sempre amou filmar durante toda a sua carreira: belas mulheres, boa música (e jazz, seu estilo musical preferido) e aquele clima surrealista que confunde a cabeça do espectador, ao mesmo tempo em que mistura sexo e morte - os dois temas mais recorrentes em seus duzentos e tantos filmes.

E eu desconheço se Alfred Hitchcock chegou a ver o filme, mas ele certamente se identificaria com vários detalhes - e, talvez, copiaria alguns outros.

PS: Eu, o blog e a MARATONA JESS FRANCO entramos em recesso a partir de hoje para o Fantaspoa 2014. Até breve!

Trailer de VENUS IN FURS




*******************************************************
Venus in Furs (1969, Reino Unido/EUA/
Alemanha/Itália)

Direção: Jess Franco
Elenco: James Darren, Maria Rohm, Klaus Kinski,
Barbara McNair, Dennis Price, Margaret Lee, Paul
Muller, Manfred Mann e Jess Franco.

C'EST FINI (?)

$
0
0

"Eu, o blog e a Maratona Jess Franco entramos em recesso a partir de hoje para o Fantaspoa 2014. Até breve!"

Com esta singela frase, publicada ao final da resenha de "Vênus em Fúria" em 5 de maio de 2014, eu me despedi sem querer do FILMES PARA DOIDOS por um período que, até o momento, já dura quatro meses e 10 dias. Não foi algo planejado, e eu realmente estava me preparando para retomar as postagens (e a inacabada Maratona Jess Franco) ao final daquele mesmo mês de maio.

Mas muitas coisas aconteceram a partir de então e adiaram o meu retorno.

Eu criei o FILMES PARA DOIDOS como uma espécie de válvula de escape em outubro de 2008. À época, eu vivia na minha pequena cidade-natal na Serra Gaúcha, trabalhava como jornalista há 16 anos no jornal de lá e escrevia críticas e artigos para a Boca do Inferno, o maior portal sobre cinema fantástico da América Latina, fazia já uns cinco anos.

A maior parte dos leitores que começaram a me acompanhar no FILMES PARA DOIDOS já conhecia meu trabalho na Boca do Inferno (onde eu tinha a limitação de só escrever sobre horror/suspense), ou como cineasta independente, outro ramo da cinefilia ao qual me dedico desde 1996.

Mas aos poucos o FILMES PARA DOIDOS ganhou seu próprio público fiel, o que me fez dar atenção exclusiva a ele (abandonando a Boca do Inferno).

Desde 2008, quando criei o blog, eu abandonei minha vidinha tranquila e meu emprego de jornalista lá na Serra Gaúcha para morar quatro anos em São Paulo, onde fiz meu Mestrado, e agora embarquei numa nova aventura ao mudar-me para Porto Alegre, para assumir um emprego como gerente de cinema no Cine Santander Cultural - a única maneira que encontrei para ganhar dinheiro com cinema desde que me conheço por gente, já que nunca consegui tirar meu sustento com meus filmes independentes ou com meus textos e artigos.

Toda mudança envolve, como o nome já diz, mudanças, adequações e reviravoltas na nossa vida cotidiana. Desde o começo de junho, quando me mudei em definitivo para Porto Alegre, pulei de um apartamento "improvisado" para outro finalmente alugado, mas continuo sem internet em casa por burocracias da vida moderna. Além disso, ter novamente um trabalho fixo exige uma atenção e um comprometimento enormes, que me mantiveram longe do FILMES PARA DOIDOS durante todo esse tempo.

Eu resolvi manter o blog sem atualizações durante esses quatro meses e 10 dias, mas entrando uma vez por semana, ou a cada 15 dias, para pelo menos moderar os comentários, pois seria uma atividade mínima para manter o FILMES PARA DOIDOS atualizado e "vivo". Eu obviamente tenho acesso à internet no trabalho, mas quase todos os sites "interessantes" são bloqueados aqui por motivos óbvios, incluindo o Blogspot (explico isso antes que algum leitor espertalhão sugira que eu comece a atualizar o FILMES PARA DOIDOS nas minhas horas de folga no expediente!).

E foi basicamente por essas coisas somadas (mudança + novo trabalho sem horário fixo que exige muito de mim + falta de internet em casa) que eu deixei o blog às moscas durante todo esse tempo, e se agora faço essa postagem explicando a situação é porque não imaginava tanto carinho e "pedidos de volta" dos leitores do FILMES PARA DOIDOS, como visto nos comentários dessas últimas semanas. Eu às vezes esqueço que o blog tem leitores fiéis, seguidores fiéis, que passam os dias esperando por uma nova postagem.

Na verdade, eu às vezes penso que ninguém lê o que eu escrevo, e que todo esse meu esforço é em vão. É ótimo saber que estou errado, e que existem pessoas que sentem minha falta (ou sentem falta do FILMES PARA DOIDOS, mas uma coisa não existe sem a outra). É por causa dessas pessoas que estou publicando essa justificativa para o sumiço, para que não pensem que eu morri, fugi ou abandonei tudo.

"Escolha um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida", disse (ou ao menos reza a lenda) o famoso filósofo Confúcio. O problema é exatamente isso: eu adoro o que faço aqui no FILMES PARA DOIDOS, mas já há alguns anos aquele HOBBY virou um TRABALHO, algo que me consome muito tempo, esforço e pesquisa.

Quem voltar às minhas primeiras postagens, lá em 2008, perceberá que são textos bem simples (simplórios até), trazendo unicamente minhas impressões sobre os filmes com algumas piadinha pontuais. Postagens mais recentes, entretanto, são verdadeiros tratados de pesquisa sobre o tema analisado. Acho, sinceramente, que esse é um diferencial do FILMES PARA DOIDOS para outros blogs e até para o jornalismo cultural hoje vigente em revistas e jornais.

Por exemplo, é muito fácil escrever sobre os vários filmes produzidos com o personagem Django, mas pouquíssimos jornalistas, pesquisadores, blogueiros, etc etc, se dariam ao trabalho de (re)ver todos esses filmes para escrever minuciosamente sobre eles, ao invés de simplesmente reproduzir as informações mais básicas que já estão espalhadas aí pelos quatro cantos da internet.

A própria Maratona Jess Francoé algo inédito em português, com a análise quase obsessiva das várias montagens de um mesmo filme, e às vezes são três ou quatro (tenho certeza que minha postagem sobre "A Virgin Among the Living Dead", jamais publicada por causa do recesso, será a mais completa análise sobre este filme e suas várias montagens durante um bom tempo em TODA A INTERNET, ou pelo menos até que outra pessoa seja louca como eu para debruçar-se durante tanto tempo sobre um filme desses).

Enfim, fazer o FILMES PARA DOIDOS dessa maneira que eu gosto e vocês gostam (ou pelo menos eu acho que gostam) me consome muito tempo e resulta em um trabalhão no limite do Transtorno Obsessivo-Compulsivo. E eu comecei a me preocupar MUITO comigo mesmo quando gastei uma bela grana comprando um livro importado já esgotado sobre a carreira do cineasta holandês Paul Verhoeven via internet apenas porque queria ter mais subsídios para escrever sobre um dos filmes dele,"Conquista Sangrenta"!

Ninguém mais faz isso de graça; aliás, acho que nem jornalistas QUE GANHAM SALÁRIO fazem isso, pois é mais fácil chupar informações do IMDB ou da Wikipédia!!! Alguns amigos aposentaram temporariamente os seus blogs de resenhas com três ou quatro parágrafos alegando falta de tempo, e até o Cinema em Cena, maior portal brasileiro sobre cinema ("maior" em tamanho, não em qualidade), resolveu pendurar as chuteiras alegando que não tem mais condições de continuar (eles que ganham dinheiro com a coisa). Logo, acho que eu também tenho o direito de passar um período de papo para o ar, não é?

O problema é que, como muito bem observou um leitor nos comentários, o FILMES PARA DOIDOS não paga minhas contas. Aliás, não paga nem uma cervejinha no final da tarde para comemorar a postagem de um mega-super-hiper-ultra artigo, tipo aquele do pornô em 3-D, ou aquele outro sobre filmes com cowboys negros. Eu estava fazendo um trabalho de pesquisa muito mais completo que jornalistas profissionais e empregados em jornais e revistas DE GRAÇA! Ou vocês já viram algum outro débil-mental procurar e entrevistar os atores brasileiros que foram coadjuvantes num filme obscuro tipo o "Black Demons", do Umberto Lenzi?

É por tudo isso que, até segunda ordem, o FILMES PARA DOIDOS ficará de recesso: porque eu prefiro colocar meu TOC e minha paixão pelo trabalho num emprego remunerado, como esse em que estou agora. Quando eu conseguir sossegar e voltar a enxergar o blog como um hobby, e não um trabalho que estou fazendo de graça, aí eu voltarei para ele. Até porque não consigo encontrar o mínimo tempo livre para minhas postagens gigantescas quando estou envolvido não apenas com um trabalho fixo e que exige minha atenção fora do horário de expediente, mas também com a remontagem do meu novo curta-metragem, "O Estripador da Rua Augusta", e com a pré-produção de dois "novos velhos" projetos - um documentário sobre o cineasta italiano Luigi Cozzi (com quem tenho mais de 6 horas de material, filmadas ainda em 2010!) e outro sobre o cineasta independente catarinense Petter Baiestorf (com quem tenho umas 30 horas de filmagens, feitas entre 2011 e o ano passado).

A propósito: meus textos que estão sendo publicados na Boca do Inferno, e que alguns leitores julgam ser o motivo para o abandono do blog, são bem antigos e estão sendo republicados pelo site sem que eu mude sequer uma vírgula neles (adoraria atualizá-los e até mesmo reescrever a maioria, mas realmente não me sobra tempo). Eu não escrevo nada novo para a Boca desde 2011, pelo que me lembro.

O que posso dizer a vocês com certeza é que o FILMES PARA DOIDOS não vai acabar. Mas o trabalho que paga as minhas contas merece exclusividade nesse momento e pelos meses vindouros, pelo menos até que eu esteja plenamente estabelecido e mais tranquilo em todos os sentidos.

Até lá, eu pretendo estudar formas de conseguir ganhar dinheiro com o FILMES PARA DOIDOS. Já tive e já recebi diversas e boas ideias, mas nem todas são facilmente executáveis sem um capital inicial mínimo. Inclusive o meu sonho, a curto prazo, é publicar um livro com (parte d)o material do blog, que provavelmente se chamaria "Filmes para Doidos - Volume 1"e poderia dar origem a uma série caso fosse viável economicamente. É evidente que os textos escolhidos para publicação teriam que ser revisados e adaptados para o formato, ou então o livro viraria uma enciclopédia de mil e poucas páginas. Também gostaria de transformar o material sobre Django aqui publicado e a minha pesquisa de mestrado, sobre a figura do Diabo no cinema brasileiro, em livros, porque eu sou de uma geração que gosta de ter o livro na mão e folheá-lo, mesmo contando com informação gratuita na rede.

(Se você, que está lendo isso, for um editor com interesse em abraçar algum desses projetos, por favor avise! Minha ideia inicial era fazer projetos de financiamento coletivo para os livros, mas ao mesmo tempo eu prefiro eliminar o processo braçal da coisa - diagramação, correr atrás de gráfica, orçamentos da coisa toda... - e me dedicar apenas a escrever.)

Seria lindo ganhar dinheiro para escrever sobre as coisas que eu gosto! Se vocês tiverem ideias melhores (e facilmente aplicáveis), eu também adoraria ouvir.

Depois de tudo isso, talvez alguns leitores fiéis do FILMES PARA DOIDOS continuem inquietos. "Mas afinal, quando o blog vai voltar?", podem continuar perguntando nos comentários, que eu continuarei moderando e publicando de tempos em tempos.

Voltar? Ora, mas o FILMES PARA DOIDOS nunca saiu daqui! Ele sempre existirá, perpetuando essas mal-traçadas linhas sobre vossos filmes do coração, sobre tranqueiras inimagináveis e sobre temas divertidíssimos que outros pesquisadores/jornalistas/blogueiros não julgam tão importantes. Já leu tudo que foi publicado desde 2008? Em caso negativo, navegue pelo índice e divirta-se.

Fato é que enquanto houverem filmes e enquanto houverem doidos, o FILMES PARA DOIDOS nunca vai terminar!

Até a volta.

MARATONA JESS FRANCO

$
0
0

Hoje (2 de abril de 2014) faz exatamente um ano que o mundo do cinema perdeu um dos seus nomes mais atuantes: o mítico Jess Franco. Nascido Jesus Franco Manera em Madrid, Espanha, em 1930, ele teria dirigido, segundo o IMDB, 201 filmes, mas o número pode ser muito maior devido à quantidade de versões existentes de um mesmo filme (versão do diretor, versão do produtor, versão com sexo explícito enxertado) e também pelo expressivo total de projetos não-concluídos ou nunca lançados por problemas diversos.

Jess Franco iniciou-se artisticamente com música (foi trompetista e pianista) e teatro (foi ator e diretor), mas não demorou para encontrar sua vocação no cinema, primeiro como compositor, depois como assistente de outros cineastas, e finalmente como diretor, roteirista e compositor da trilha (ufa!) do seu primeiro filme, "Tenemos 18 Años" (1959).

A essa altura, ele estava com 29 anos e, por motivos até hoje desconhecidos, havia sido expulso do Instituto de Investigaciones y Experiencias Cinematográicas (IIEC), após apenas dois anos de curso. O fato de ter se tornado um dos diretores de maior filmografia da história certamente foi um belo tapa na cara dos antigos mestres...

Ironicamente, Jess trazia no seu próprio nome o de dois personagens que não lhe foram muito simpáticos durante sua longa trajetória: Jesus, para alguém que o Vaticano chamou de "o diretor mais perigoso do mundo"(junto com Luis Buñuel), e Franco, sendo que ele foi perseguido e censurado durante a ditadura do General Francisco Franco na Espanha (entre 1939 e 1975), e teve que abandonar o próprio país em que nascera para poder trabalhar em paz.


Jess, o homem que viveu e respirou cinema: "Me aposentar? Eu não vou me aposentar! Eu vou me aposentar no dia em que eu morrer", prometeu em entrevista a site norte-americano em 2009. Dito e feito: "Revenge of the Alligator Ladies", seu último filme, foi lançado seis meses depois de sua morte, em outubro de 2013!


Ao longo das próximas cinco décadas, o incansável Jess desbravou a Europa dirigindo filmes de baixíssimo orçamento, mas com um apuro visual e narrativo que se tornaria sua marca registrada. Trabalhou com praticamente todos os gêneros, dos filmes de horror ao pornô, muitas vezes mesclando ambos num mesmo trabalho (no que alguns pesquisadores chamam de "horrotica"), e sempre emendando uma produção na outra. Em alguns anos, chegou a dirigir mais de 10 filmes!

Neste meio século de trajetória, Jess só não fez faroestes. Em compensação, dirigiu cenas adicionais para um filme do Zorro assinado por Marius Lesoeur em 1975, e também escreveu roteiros para dois filmes de El Coyote dirigidos por Joaquín Luis Romero Merchant nos anos 50. Logo, nem mesmo nesse gênero ele deixou de se aventurar!

Se Jess Franco hoje é "cult", até uns 15 anos atrás a história era diferente: confessar-se fã do diretor em um grupo de cinéfilos era o mesmo que dizer que você estava com AIDS, lepra e tuberculose AO MESMO TEMPO. Geralmente, todos davam aquele sorrisinho amarelo, meio sem jeito, e te deixavam de lado, fora da conversa.

Eu mesmo já senti este preconceito ao confessar publicamente que Jess Franco era um dos meus diretores preferidos numa comunidade de cinema dos tempos do Orkut. A partir de então, alguns usuários passaram a descartar imediatamente qualquer opinião minha sobre qualquer filme justificando com algo do tipo"Ah, mas você gosta até dos filmes do Jess Franco".


Franco (centro) em ação: "Eu fiz alguns filmes interessantes, ou mais ou menos bonitos. Mas nunca fiz nada grande o suficiente, do meu ponto de vista. Grande como John Ford ou algo assim".


Felizmente, o tempo fez justiça à obra do espanhol, principalmente quando diretores consagrados como Quentin Tarantino (lá fora) e Carlos Reichenbach (aqui) começaram a falar bem de Jess Franco, forçando aquela mesma geração que antes o condenava apenas pela "fama" a procurar seus filmes para ver o que havia de tão especial (ou não) neles. Muito crítico de cinema metido também acabou dando a mão à palmatória.

Tarantino inclusive usou uma música de "Vampyros Lesbos"(1970), uma das obras-primas de Jess, em "Jackie Brown" (1997), e numa entrevista declarou que Franco e Pedro Almodóvar eram seus diretores espanhóis preferidos!

Mas Jess Franco nem precisaria de defensores como Tarantino ou Reichenbach. No passado, grandes mestres do cinema como Fritz Lang, Orson Welles e o espanhol Juan Antonio Bardem já haviam ficado igualmente impressionados com a sua obra. Os dois últimos inclusive chamaram aquele jovem hiperativo para ser assistente de direção (Franco teve a honra de trabalhar com Welles em seu lendário e nunca finalizado "Don Quixote" nos anos 50!).

Vá lá que os detratores da obra de Jesus têm argumentos risíveis. Por exemplo: aqueles que só viram um ou dois filmes de Franco (e geralmente os piores) alegam que ele não sabe usar a câmera e abusa do zoom até as cenas saírem do foco. Sim, não nego que tem muito disso na obra de Jess. Mas mostre um filme como"Miss Muerte" ou "Venus em Fúria"para esses moleques e eles ficarão completamente sem palavras.


Sexo e morte, temas comuns no trabalho do diretor. "Eu acho que sexo e morte andam juntos. Se você fizer um filme sobre sexo de uma forma divertida, é diferente. Mas se você for levar o tema a sério, aí a morte está sempre por perto", justificou Franco.


Jess continuou fazendo filmes até morrer, ainda que seus últimos trabalhos sejam produções (ainda mais) capengas gravadas direto em vídeo digital no apartamento do diretor, e com equipes minúsculas que não chegavam a 10 pessoas (resenhei um dos últimos, "Paula-Paula", na época do lançamento, em 2010. A esposa e musa Lina Romay também participou ativamente de sua obra até o fim, e morreu um ano antes do marido, em fevereiro de 2012.

Em fevereiro de 2009, Jess Franco recebeu uma distinção especialíssima da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas da Espanha (o equivalente ao Oscar por lá): um prêmio Goya especial pelo conjunto da sua obra. Era o "cala-boca" que faltava para os seus detratores, já que a distinção o colocou definitivamente no rol dos cineastas "respeitáveis" e imortais.

Meu primeiro contato com a obra de Jess Franco foi sem saber: no começo dos anos 1990, aluguei a fita brasileira do seu filme "The Devil Hunter" (chamado "Manhunter - O Sequestro" por aqui) sem nenhuma referência. Numa época pré-internet e pré-IMDB, você tinha que confiar nas informações dos créditos iniciais, da capinha da fita e do Guia de Filmes Nova Cultural, e nos três lugares dizia que o diretor deste filme se chamava "Clifford Brown" - um dos inúmeros pseudônimos usados por Jess durante sua longa carreira.

Ainda que, à época, eu tenha achado o filme muito ruim, algo ali me marcou para sempre e me fez ser fã dele até hoje (fiz questão de comprar o DVD recentemente lançado pela Severin nos EUA): a podreira tinha um estilo difícil de explicar, a tosquice generalizada era muito engraçada, e a nudez era constante. O que mais um pré-adolescente em busca de 90 minutos de diversão poderia querer?


Franco interpretando um padre exorcista. Sobre ser considerado um dos diretores mais perigosos do mundo pelo Vaticano, ele respondeu: "Eu não sou católico, então não ligo para isso.
Mas, de qualquer jeito, é muito estúpido. Posso citar
umas 200 pessoas que são piores do que eu!"


Depois fui tendo contato com outras obras mais conhecidas de Jess, como "Santuário Mortal" (1968) e sua adaptação de"Conde Drácula" (1969) com Christopher Lee. Já mais velho, percebi que existia uma grande qualidade nesses trabalhos, mesmo com a ausência de grandes orçamentos, e mesmo com as piadinhas feitas pelos cinéfilos "de arte" na época (que, hoje, devem estar correndo atrás do prejuízo e assistindo o maior número possível de filmes do diretor para não passar vergonha).

Aí chegou a época do DVD, e todos esses filmes passaram a ser remasterizados e lançados no seu formato original, quando toda uma geração redescobriu o trabalho de Franco e pôde perceber que a fotografia não era tosca como parecia nos tempos do vídeo. Pelo contrário, Jess Franco sabia exatamente o que estava fazendo; e, quando queria, fazia muito bem.

Ele obviamente dirigiu vários filmes bem ruins, e não dá para esperar outra coisa de alguém que chegava a fazer cinco ou seis POR ANO. Mas sejamos justos: como esperar qualidade constante numa filmografia com mais de 200 títulos? Tem diretor hoje que só fez 10 filmes, com muito mais dinheiro e recursos, e pelo menos cinco deles são intragáveis!!

Pete Tombs, famoso pesquisador de cinema "alternativo" e dono do selo Mondo Macabro (que lançou diversos dos clássicos de Jess em DVD), foi quem melhor definiu este estranho fascínio que a obra do espanhol provoca no espectador:"Franco sempre foi alguém que seguiu seu próprio caminho. Às vezes funcionava, às vezes não, mas geralmente sempre tem algo memorável ali, mesmo no pior dos seus filmes. Pode ser uma única cena, ou apenas o clima e a atmosfera".


Com Lina Romay, sua eterna musa. "Eu não acho que tenha um filme definitivo. Mas se tivesse que salvar filmes meus de um incêndio, eles seriam 'Necronomicon', 'Venus in Furs' e
'Miss Muerte'. Esses são os mais sinceros. Mas não vou dizer
que eu os amo, porque não os amo"
, declarou.

Porém, mesmo com as facilidades dessa nossa Era Internética, catalogar e descobrir a obra de Jess Franco continua sendo uma tarefa difícil. Inúmeras vezes ele filmou cenas alternativas para lançar um mesmo filme em países diferentes; em outras oportunidades, produtores e distribuidores arruinaram as versões originais inserindo cenas filmadas por outros.

É comum que a cópia lançada em um país tenha cenas de nudez, enquanto a de outro tem cenas com os atores vestidos; às vezes, atores diferentes interpretam os mesmos personagens em diferentes montagens de um mesmo filme para diferentes países, e por aí vai. Isso sem contar as versões pornô de alguns filmes que, originalmente, não eram!

Logo, qualquer cinéfilo que queira realmente se debruçar sobre a obra de Jess Franco e estudá-la terá um longo caminho pela frente - até porque faltam fontes e análises mais aprofundadas sobre a maior parte dos seus filmes. Os poucos livros dedicados à obra do diretor, como o fora de catálogo "Obsession", são mais uma coletânea de pequenas resenhas do que algo completo e definitivo.

O legal é que esse trabalho de (re)descobrir a obra de Jess pode reservar muitas surpresas. Tipo a minha satisfação ao perceber que o DVD de "The Devil Hunter" trazia várias cenas não-existentes na cópia lançada em vídeo aqui no Brasil, e que eu já conhecia praticamente de cor. Ou as cenas "alternativas" dos filmes clássicos do diretor, que volta-e-meia aparecem, dando uma nova cara a produções já conhecidas.


"Eu não me importo em ser lembrado. Não sou um grande escritor ou algo assim. Isso deveria ser reservado para quem fez algo realmente grande. Acho que um bom diretor de cinema faz filmes para divertir as pessoas, mas não deve ser considerado um Cervantes, sabe? Um filme é um filme, algo para te divertir durante algumas horas, e não para ser considerado como se fosse Shakespeare!", declarou o inesquecível Jess.


Esta MARATONA JESS FRANCOé uma singela tentativa de homenagear o primeiro aniversário de um mundo sem Jesus Franco. Por isso, resolvi fazer de abril um autêntico"Mês Franco", com atualizações diárias aqui no blog trazendo uma pequena parte da sua enorme filmografia. A relação dos filmes está aí embaixo. Foram escolhidos sem critério específico, apenas porque eram as obras sobre as quais eu queria escrever (ou já tinha resenhas prontas aqui). Para ficar mais divertido, as atualizações não seguirão esta ordem cronológica:

- O TERRÍVEL DR. ORLOFF (Gritos en la Noche / L'Horrible Docteur Orlof, 1961)
- O SÁDICO BARÃO VON KLAUS(La Mano de un Hombre Muerto /
Le Sadique Baron Von Klaus
, 1962)
- MISS MUERTE / THE DIABOLICAL DR. Z (1965
- CARTES SUR TABLE (1966)
- NECRONOMICON (1967)
- SANTUÁRIO MORTAL (Marquis de Sade's Justine / Deadly Sanctuary, 1968)
- VÊNUS EM FÚRIA (Venus in Furs, 1969)
- CONDE DRÁCULA (Bram Stoker's Count Dracula, 1969)
- PESADELOS NOTURNOS (Les Cauchemars Naissent la Nuit, 1970)
- VAMPYROS LESBOS (1970)
- ELA MATOU EM ÊXTASE (She Killed in Ecstasy / Sie tötete in Ekstase, 1970)
- DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN / DRACULA, PRISONER OF FRANKENSTEIN (1971)
- LA COMTESSE PERVERSE (1973)
- A MALDIÇÃO DA VAMPIRA (La Comtesse Noir / Female Vampire, 1973)
- A VIRGIN AMONG THE LIVING DEAD (1973)
- JACK THE RIPPER (1976)
- MONDO CANNIBALE / WHITE CANNIBAL QUEEN (1980)
- MANHUNTER - O SEQUESTRO (The Devil Hunter / El Caníbal, 1980)
- SADOMANIA (1981)
- OÁSIS DOS ZUMBIS (Oasis of the Zombies, 1981)
- BLOODY MOON (1981)
- MACUMBA SEXUAL (1981)
- LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES (1982)
- A QUEDA DA CASA DE USHER(El Hundimiento de la Casa Usher / Revenge in the House of Usher (1983-1987)
- DIAMONDS OF KILIMANDJARO(1983)
- LA SOMBRA DEL JUDOKA CONTRA EL DOCTOR WONG (1984)
- SEM FACE (Faceless / Les Prédateurs de la Nuit, 1987)
- O MASSACRE DOS BARBYS (Killer Barbys, 1996)
- PAULA-PAULA (2010)


A partir deste ano, decreto também que todo mês de abril será "Mês Franco"no FILMES PARA DOIDOS, então podem esperar novas edições desta Maratona em 2015, 2016, 2017 e até quando existirem filmes de Jess para serem assistidos. O que, convenhamos, garantirá material para estas maratonas durante bastante tempo!

E se existir um "Outro Lado", espero que Jess Franco esteja se divertindo muito por lá, produzindo mais algumas centenas de filmes com todos os seus colaboradores que também já partiram (Soledad Miranda, Lina Romay, Howard Vernon, Dennis Price...). Isso seria o equivalente à minha noção de Paraíso...

Divirtam-se sem moderação!

PS: As frases de Franco reproduzidas nesta postagem foram retiradas de uma mesma entrevista feita pelo site de entretenimento The A.V. Club em 2009. Ela pode ser lida na íntegra neste link!


LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES (1982)

$
0
0

LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES (nos EUA, "The Mansion of the Living Dead") é uma grande traquinagem de Jess Franco: apesar do título, não existe nenhuma "mansão" (a história se passa num hotel e num velho mosteiro) e nem um único morto-vivo (as criaturas que aparecem lá pelas tantas estão mais para fantasmas do que para zumbis na sua definição clássica, e elas sequer se alimentam de carne humana).

Para compensar, e isso não está no título, tem cinco mulheres gostosas que passam praticamente o filme inteiro peladas e/ou atracadas em inúmeras cenas de sexo lésbico softcore. Ok, Jesus, com essa você está até perdoado pelo título enganoso!


Em seu retorno à Espanha, depois de quase uma década morando na França por causa da ditadura do General Francisco Franco, Jess rodou diversos filmes nas Ilhas Canárias, praticamente um após o outro: "Oásis dos Zumbis", "Macumba Sexual" (uma refilmagem disfarçada do seu clássico "Vampyros Lesbos", com a transexual Ajita Wilson no lugar da musa Soledad Miranda), e este aqui, entre outros que vieram depois.

Segundo o livro "Obsession: The Films of Jess Franco", "Macumba Sexual" e LA MANSIÓN... foram rodados ao mesmo tempo em 1981. O primeiro ficou pronto no mesmo ano, enquanto o outro foi concluído logo depois, em 1982. Já o IMDB data os dois filmes, respectivamente, como sendo de 1983 e 1985. É possível que estas sejam as datas que eles chegaram aos cinemas, mas, na dúvida, fico com a informação do livro "Obsession" (um letreiro de agradecimento que aparece no começo de LA MANSIÓN... também traz a data 1982).


Apesar de ter filmado um horror com mortos-vivos antes ("Oásis dos Zumbis"), Franco já manifestou publicamente sua antipatia pelas criaturas (que considerava "estúpidas") e até pelos clássicos do gênero dirigidos por George A. Romero (que considerava um diretor "primitivo"). Logo, não é surpresa que os mortos-vivos aqui sejam radicalmente diferentes daqueles com os quais o público estava acostumado no começo dos anos 1980.

Ao invés daqueles cadáveres redivivos, apodrecidos e cambaleantes que se multiplicavam às centenas nos filmes da época - graças às cópias italianas dos filmes de Romero -, os zumbis de LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES estão mais para os Cavaleiros Templários ressuscitados da clássica série dos Mortos Cegos, dirigida pelo espanhol Amando de Ossório na década de 70.


Portanto, o que temos aqui não são exatamente mortos-vivos, como o título anuncia, mas monges fantasmagóricos representados em pelo menos três diferentes estilos: alguns são humanos "normais", outros têm usam uma máscara imóvel de caveira, e outros ainda uma maquiagem tão tosca representando "podridão" que mais parece que eles esfregaram pasta de dente no rosto!

Na entrevista que acompanha o DVD do filme, lançado nos EUA pela Severin, Franco inclusive confessou sua inspiração nos Mortos Cegos do compatriota Ossorio: "Gosto bastante do primeiro ("La Noche del Terror Ciego", 1972). As imagens, aquele trem à noite, com os mortos aparecendo, são muito criativas. Não se parece em nada com os outros filmes de mortos-vivos que eu vi".


LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES conta a história de quatro turistas alemãs safadinhas (garçonetes ou strippers, dependendo da fonte pesquisada), que viajam para as Ilhas Canárias em busca de férias inesquecíveis e de homens viris para satisfazerem seus desejos sexuais - embora também joguem no outro time e transem umas com as outras conforme a necessidade. Enfim, as típicas garotas liberais de uma época pré-Aids.

A mocinha Candy é interpretada por Lina Romay, esposa e musa de Jess. Como na época ela já tinha aparecido em dezenas de filmes do maridão, o casal resolveu criar um "disfarce" e um nome falso para a atriz, que, em algumas ocasiões, se fazia passar por "Candice Coster" (o nome foi depois abreviado para Candy), usando uma peruca chanel loira para mudar o visual (abaixo). Em tempos pré-internet e com poucas fontes de pesquisa, ainda mais de produções obscuras como essa, muita gente deve ter acreditado que se tratavam realmente de duas atrizes diferentes.


Já as amigas safadinhas são Mabel (Mabel Escaño), Lea (Mari Carmen Nieto, creditada como "Mamie Kaplan") e Caty (Elisa Vega, creditada como "Jasmina Bell"). Todas as três já haviam trabalhado com Franco antes ou depois, em diversos outros filmes.

Quando as quatro garotas com fogo no rabo chegam ao luxuoso hotel para suas tão sonhadas férias, encontram o local completamente deserto - apesar de o suspeito gerente Carlo Savonarola (Antonio Mayans, outro colaborador habitual de Franco) garantir que todos os quartos estão ocupados e que só restaram dois, um para cada casal de amigas, em lados completamente opostos do edifício.


As inocentes moçoilas não desconfiam de nada. Afinal, imaginam elas, os outros hóspedes estão na praia curtindo suas férias. Entregam-se, então, aos prazeres da carne entre elas mesmas, no momento em que chegam aos seus quartos. Mas quando resolvem descer até a praia, encontram o local tão deserto quanto o hotel. Além do gerente Carlo e de um misterioso jardineiro (Albino Graziani), parece não haver viv'alma nas redondezas!

As confusões começam no momento em que as moças resolvem se separar para zanzar pelas redondezas. Perto do hotel, existe um velho mosteiro abandonado com uma trágica história do passado, que será explicada em determinado momento da trama. E seus habitantes não são exatamente humanos, mas sim fantasmagóricos monges que querem punir os "pecadores" justamente praticando o pecado - nesse caso, estuprando e matando suas vítimas!


Apesar de o título anunciar outro filme comum de zumbis devoradores de carne humana, e da inspiração confessa de Jess na série dos Mortos Cegos, LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES tem muito mais elementos em comum com - pasmem - "O Iluminado", de Stanley Kubrick.

É impossível não lembrar de uma espécie de Overlook tropical nas inúmeras cenas com as garotas perambulando sozinhas pelos corredores escuros e desertos do hotel, assim como as súbitas aparições de Carlo, do jardineiro e até de uma misteriosa mulher acorrentada em um dos quartos (interpretada por Eva León) lembram os fantasmas do clássico de Kubrick baseado em Stephen King!


Pode até ser que esta seja uma leitura muito ambiciosa do filme, já que, ao invés de Jack Nicholson com cara de psicopata, o que temos aqui são quatro garotas seminuas desfilando pelo hotel deserto. Mas é possível que Jess tenha se inspirado inconscientemente em "O Iluminado" na hora de escrever o roteiro - embora o hotel em questão seja menos assombrado que o velho mosteiro vizinho.

Ele consegue até criar um climão depressivo de solidão e isolamento com as imagens daquele hotel "abandonado"à beira mar, numa paradisíaca paisagem ensolarada que torna o "vazio" do local ainda mais melancólico - o extremo oposto do Overloook, de "O Iluminado", que estava isolado por causa do inverno e das tempestades de neve! Nesse aspecto, a aparição das quatro moças espavitadas e cheias de vida, usando roupas coloridas ou nenhuma roupa, cria um curioso contraste com o cenário deserto.


Mas é bom não conjecturar muito nesse sentido, pois é possível que a ambientação no hotel vazio seja uma simples solução improvisada para contornar custos de produção (como a contratação de figurantes para interpretarem os demais hóspedes). Nunca há uma explicação satisfatória para o fato de o local estar deserto, e, no fim, o espectador também nem se preocupa com isso.

Acontece que esta é uma daquelas produções tão baratas que o velho Franco teve que fazer praticamente tudo para economizar. Embora os créditos iniciais apresentem diversos nomes, como se a equipe técnica fosse bem variada, a maioria deles é o próprio Jess usando pseudônimos diferentes: ele assinou a direção de fotografia como "Joan Almirall" e repetiu a velha piadinha do roteiro baseado em livro de "David Kuhne", autor inexistente que aparece nos créditos desde os seus primeiros filmes! Franco assinou ainda o roteiro e a edição, e, se bobear, também serviu a marmita nos intervalos para almoço!

(Algumas fontes informam que ele também fez a trilha sonora com o pseudônimo "Pablo Villa", embora este nome falso também seja usado pelo músico francês Daniel J. White - que, segundo o livro "Obsession", foi o verdadeiro compositor aqui.)


LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES foi produzido num momento interessante, em que a Espanha já vivia um gradual processo de reabertura depois da morte do ditador General Franco (em 1975). Se antes era proibido mostrar um simples peitinho de fora nos filmes espanhóis, agora os diretores já podiam escancarar tudo - e o espectador espanhol inclusive esperava por isso para "tirar o atraso"! Algo não muito diferente da época pós-Ditadura aqui no Brasil, também no começo da década de 1980.

Isso justifica a quantidade de mulher pelada e putaria no filme. Se essas cenas fossem estirpadas por um censor rancoroso, o longa-metragem de 97 minutos seria reduzido a um curta com no máximo 15, pois todo o restante do tempo é ocupado por imagens das garotas peladas ou se comendo (ou sendo comidas)!


Inclusive fica bem claro, desde o começo, que a trama não se passa num universo real e crível, mas sim no mirabolante universo "Franquiano" de história em quadrinhos de sacanagem, em que todo mundo se insinua e transa com todo mundo, e as garotas circulam peladonas sem a menor inibição, mesmo quando é para checar sons estranhos nos corredores do hotel (caso encontrem algum desconhecido, elas conversam normalmente, sem se preocupar em cobrir a nudez!).

Tem até uma cena engraçadíssima em que Candy, a personagem de Lina, sai do seu quarto e fica desfilando pelo hotel completamente nua, "vestindo" apenas um par de sapatos de salto agulha, completamente despreocupada com a possibilidade de alguém aparecer e flagrá-la daquele jeito (imagens abaixo)!

O calçado fetichista, aliás, é de uso obrigatório por todas as garotas do filme (imagino que não tenha sido muito confortável para as atrizes), mesmo quando elas vão à praia de biquíni ou saem para passear com minúsculos shortinhos enfiados na bunda!


As cenas de sexo não são explícitas (embora mostrem mais que o suficiente, sem deixar nadinha para a imaginação do espectador), porém em alguns momentos quase chegam lá. E o roteiro tosco de Franco tem um climão geral de filme pornô, com situações forçadas e diálogos simplesmente inacreditáveis para conduzir às trepadas entre os personagens.

Por exemplo: quando Candy e uma amiga decidem dormir juntas, preocupadas que estão com o desaparecimento das outras duas, não demora muito para esquecerem do medo e caírem de boca uma na outra. "Se eu não transar, não consigo dormir", justifica Candy. Depois de alguns momentos de "lambeção", ela interrompe a sessão de sexo oral para tirar um pêlo pubiano que ficou na sua língua, e a parceira sugere: "Assopre e faça um desejo, pode dar sorte!".


Embora não esteja entre os trabalhos mais memoráveis de Jess, e perca feio na comparação com suas grandes obras dos anos 1960-70, LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTESé razoavelmente divertido e eficiente, desde que - e isso deve ser ressaltado - o espectador embarque no espírito da coisa!

Quem espera um filme de zumbis tradicional vai quebrar a cara, já que eles fazem apenas participação especial. Na maior parte do filme, inclusive, parece que a maior ameaça à integridade física das garotas é o misterioso gerente Carlo, que faz as vezes de um Norman Bates mais safadinho.


Quem espera um filme de horror tradicional também vai quebrar a cara, pois Franco está mais preocupado com a putaria do que com a parte "assustadora" da história, que é bem desleixada (tem até refletor aparecendo no quadro!). A narrativa bipolar começa em clima de comédia erótica, tipo uma pornochanchada brasileira, descambando para o "horror" apenas lá pelos 45 ou 50 minutos (mais ou menos como Eli Roth faria, duas décadas depois, em "Hostel", para citar um exemplo contemporâneo).

Mas é claro que, quando falo em "horror", estou sendo bem generoso, pois não há violência nem sustos, e a tensão é mantida num nível mínimo. Os efeitos de maquiagem também são mambembes e improvisados: os monges com cara de caveira são figurantes usando máscaras de plástico das mais vagabundas, daquelas que você compra na 25 de Março em época de Halloween - o completo oposto dos maravilhosos Templários Zumbis dos filmes de Amando de Ossorio!


Tudo considerado, passe longe de LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES principalmente se a sua ideia de diversão não envolve uma overdose de cenas com mulheres nuas e/ou se comendo, pois são mais raros os momentos em que as atrizes estão VESTIDAS.

A personagem de Eva León fica pelada o filme todo, e confesso que eu até estranhava quando Lina Romay aparecia com alguma roupa, de tanto que ela se pela ao longo dos noventa e poucos minutos!


Vendo a entrevista com o diretor no DVD da Severin, percebe-se que os monges fantasmagóricos estão na trama não apenas para justificar minimamente o título enganoso, mas também como um comentário crítico de Franco sobre a Inquisição Espanhola - afinal, os amaldiçoados religiosos buscam a punição dos "pecadores" cometendo atos tão ou mais horríveis do que aqueles que tentam combater!

Mas é uma leitura muito simplória para se tirar da meia dúzia de monges com máscara de carnaval que aparecem estuprando e matando garotas peladonas em LA MANSIÓN DE LOS MUERTOS VIVIENTES. O negócio é deixar de lado qualquer pretensão e entrar no clima de porra-louquice da coisa toda.


Assim, este não é o filme que eu indicaria para quem está começando a conhecer a obra de Jess Franco e quer entender porque o homem é tão cultuado. Fãs e conhecedores do trabalho do diretor já estão vacinados para vários dos elementos que aparecem aqui, como o ritmo lento e a ênfase no sexo e na nudez.

Mas os marinheiros de primeira viagem podem não curtir a proposta. A não ser que você encare de cabeça aberta e sabendo de antemão que não verá apenas mais um filme de zumbis como as outras dezenas (ou centenas) que já viu.

Pense numa mistura de "O Iluminado" com "La Noche del Terror Ciego", estrelada por lésbicas que raramente aparecem com roupas, e divirta-se - se puder.



***********************************************************
La Mansión de los Muertos Vivientes /
The Mansion of the Living Dead (1982, Espanha)

Direção: Jess Franco
Elenco: Lina Romay (aka Candy Coster), Antonio Mayans
(aka Robert Foster), Mabel Escaño, Elisa Vega (aka Jasmina
Bell) e Mari Carmen Nieto (aka Mamie Kaplan).

DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN (1971)

$
0
0

No começo dos anos 1970, Drácula e Frankenstein figuravam entre os monstros clássicos mais adaptados para o cinema: o vampirão já tinha cinco filmes produzidos pela Universal nos Estados Unidos e mais cinco pela Hammer na Inglaterra, enquanto a criatura ressuscitada pelo Dr. Frankenstein aparecera em sete filmes da Universal e outros seis da Hammer. Isso sem contar produções baratas feitas "por fora", tipo o mexicano "Santo en El Tesoro de Dracula" (1969) e o italiano "Lady Frankenstein" (1971).

O próprio Jess Franco já tinha feito uma versão de Drácula em 1969, estrelada por Christopher Lee ("O Conde Drácula", considerado uma das adaptações mais fiéis do livro de Bram Stoker!), quando resolveu juntar as duas criaturas num único filme, DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN, de 1971.


Não era algo exatamente original, considerando que a Universal estava filmando "crossovers" entre seus monstros mais famosos desde a década de 40, e no mesmo ano de 1971 o norte-americano Al Adamson lançou uma famosa tranqueira com título e proposta muito semelhantes, "Dracula Vs. Frankenstein"!

Mas, ora bolas, estamos falando de Jesus Franco! Mesmo que a ideia não seja original, é claro que uma versão "Franquiana" para o suposto duelo entre Drácula e Frankenstein será algo... hã... no mínimo diferente - para o bem ou para o mal. E embora DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN não seja um dos títulos mais famosos da fase setentista do diretor espanhol, certamente é uma obra bem curiosa e que merece ser conhecida.


Numa época em que os filmes de vampiros produzidos pela Hammer ainda eram bastante populares, com sua alta carga de erotismo e violência, Franco seguiu pelo caminho inverso e puxou o freio de mão no quesito "sexo e sangue". E olha que o território não era desconhecido para o espanhol: além de "O Conde Drácula", ele já havia feito a obra-prima "Vampyros Lesbos", repleta de nudez e erotismo!

O motivo para o velho Jess se conter em DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN é que sua proposta era outra: ao contrário do que faziam os filmes da Hammer, ele queria homenagear os clássicos da Universal, tipo o "Drácula" ou o "Frankenstein" de 1931. Não por acaso, seu monstro de Frankenstein é uma cópia cuspida e escarrada da criatura interpretada por Boris Karloff no filme de James Whale - embora aqui numa versão sem orçamento nenhum, é claro.


Além disso, naqueles tempos em que a Hammer conquistava o público com filmes cheios de efeitos especiais e mulher pelada, Franco preferiu fazer um filme mais introspectivo e praticamente sem diálogos: em 78 minutos, conta-se pouco mais de uma dúzia de diálogos, e a maioria deles em "off" (ou seja, foram inseridos na pós-produção).

Como os atores não falam, ou falam muito pouco, eram obrigados a interpretar com a expressão corporal e principalmente com os olhos, que são mostrados em close o tempo inteiro pela câmera de Franco. Isso aproxima DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN de uma versão colorizada dos velhos clássicos com vampiros do cinema mudo, tipo "Nosferatu" e "Vampyr" (por mais herético que possa parecer comparar Jess Franco com Murnau e Dreyer).


O roteiro do próprio Franco começa com uma citação do seu escritor fictício preferido, "David H. Klunne" (que vem a ser o próprio Jess). Depois, o Conde Drácula (interpretado por Howard Vernon) ataca uma garota que se preparava para dormir (Anne Libert), numa pequena vila europeia que parece ter parado em algum ponto do século 19.

É quando o médico do povoado, Dr. Jonathan Seward (o argentino Alberto Dalbés), resolve dar um fim na ameaça: antes que anoiteça, ele vai sozinho ao castelo de Drácula, encontra seu caixão numa cripta e enfia uma estaca de madeira em seu coração. Ao invés de virar pó, como todo mundo espera, o finado vampiro regride ao aspecto de morcego! Só não se sabe que fim levou suas roupas...


Parece que temos um final feliz, mas na verdade o filme mal começou: eis que chega à vila o Dr. Frankenstein (interpretado pelo inglês Dennis Price), acompanhado pelo seu fiel ajudante demente Morpho (Luis Barboo). Em mais uma auto-citação de Franco, "Morpho" também era o nome do ajudante do Dr. Orloff em seu clássico "O Terrível Dr. Orloff", de 1961.

Se até então parecia que a história se passava no século 19 - pelo aspecto do vilarejo, pelas roupas e pelo fato de o Dr. Seward deslocar-se numa carruagem -, a chegada de Frankenstein num automóvel provoca uma ruptura, entregando a ambientação contemporânea da trama.


O cientista se muda para o agora desabitado castelo de Drácula, onde monta seu novo laboratório. Pelo pouco que o roteiro sem diálogos entrega, àquela altura ele já criou o seu famoso monstro, e agora pretende dominar o mundo com a ajuda de Drácula.

Afinal, vamos combinar que daria muito trabalho montar novos monstros feitos com partes de cadáveres, enquanto que com um vampiro ao seu serviço ele pode facilmente gerar novos sanguessugas ambulantes para o seu "exército das trevas"!


O primeiro passo do Dr. Frankenstein é ressuscitar o Conde. Morpho vai à cidade e sequestra uma dançarina de cabaré (Josiane Gilbert), que depois tem seu sangue drenado para reviver o vampirão.

A cena é ao mesmo tempo hilária e perturbadora: um morcego vivo (e real!) é mostrado dentro de um jarro de vidro, sendo banhado com sangue falso até praticamente se afogar; num corte rápido, o Drácula de Howard Vernon aparece inteirinho (e com roupas!) no lugar do morcego. Só não se sabe onde foi parar o jarro de vidro, mas é melhor nem perguntar para não parecer uma pegadinha tipo aquela do bambu...


Também não fica muito claro, mas parece que o Dr. Frankenstein arrumou uma forma de controlar o ressuscitado Drácula, e este passa a seguir fielmente as suas ordens, atacando novos inocentes no povoado para a criação do tal exército das trevas.

Quem não gosta muito dessa história é a noiva de Drácula (a portuguesa Britt Nichols, cujo verdadeiro nome é Cármen Yazalde). Ela dormia tranquilamente num caixão próximo sem ser importunada - nem o Dr. Seward, nem o Dr. Frankenstein repararam que havia outros caixões na cripta além do de Drácula! Quietinha no seu canto, a vampirona resolve esperar pelo momento certo para dar o troco no cientista malvado e libertar o amado conde da sua escravidão.


DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN está repleto do melhor e do pior de Jess Franco, incluindo aqueles "zooms" mirabolantes em gatinhos, pássaros e detalhes de prédios até a imagem sair do foco, mas sem que isso tenha relação alguma com a trama. E as loooooongas cenas que só existem para encher linguiça e fechar o tempo de um longa, como as intermináveis viagens de carruagem do Dr. Seward até o castelo de Drácula.

Como praticamente não há diálogos e nem conversas entre os personagens, estas cenas longas e arrastadas, somadas ao silêncio da narrativa "introspectiva", acabam se transformando num convite ao sono. Quem não conseguir resistir aos primeiros 20 minutos dificilmente vai aguentar até o final, já que o primeiro diálogo do filme só é ouvido depois de 15 minutos! (Lembro que quando Paul Thomas Anderson fez isso recentemente, em "Sangue Negro", todo mundo achou genial.)


Também há muito para rir na atmosfera pobretona do filme, especialmente na caracterização dos seus dois monstros. O Drácula de Vernon é um dos piores da história do cinema, e isso que o ator geralmente é muito bom (vide sua interpretação no clássico "O Terrível Dr. Orloff", por exemplo).

Aqui, entretanto, ele aparece o tempo todo com os olhos arregalados e a boca aberta, para mostrar os caninos pontiagudos. Sem falar uma única palavra o filme inteiro, Vernon "interpreta" um vampiro patético e nada ameaçador, e cenas como aquela em que mostra a boca suja de sangue após atacar uma vítima só pioram a situação - pois fica parecendo que o ator passou batom vermelho nos lábios!


Mas o monstro de Frankenstein "interpretado" por Fernando Bilbao não é muito melhor: embora roupas, corte de cabelo e até parafusos no pescoço remetam ao monstro que Karloff imortalizou em 1931, a maquiagem aqui é de uma pobreza franciscana, com as "cicatrizes" no rosto costurado da criatura riscadas com caneta no rosto do próprio ator!

E há uma cena digna de Ed Wood quando Morpho é atacado pela vampira em forma de morcego. Inicialmente, vemos o ator segurando o morcego de borracha próximo ao pescoço. Aí parece que o diretor deu um grito alertando que o bicho estava muito parado, e Barboo começa a mexer as "asinhas" dele com os dedos, mas sem sequer se preocupar em disfarçar! Só essa parte já vale o filme, para quem gosta de momentos "quanto pior, melhor".


Por fim, o título DRACULA CONTRA FRANKENSTEINé uma enganação, já que em nenhum momento o filme mostra Drácula lutando contra os Frankensteins, seja o criador ou a criatura. Os títulos em inglês e francês, que significam "Drácula, Prisioneiro de Frankenstein" em tradução literal, são muito mais condizentes com a trama.

Até porque quem REALMENTE luta contra o monstro de Frankenstein não é Dracula, mas sim um... LOBISOMEM?!? Exato: eis que lá pelas tantas, sem nenhum anúncio, um homem-lobo igualmente mambembe (e interpretado por um anônimo identificado apenas como "Brandy"!!!) aparece lutando pelo lado do Bem, enviado por um grupo de ciganos para ajudar o Dr. Seward no combate aos vilões. É o mais perto de uma luta de monstros que Franco mostra - remetendo ao clássico da Universal "Frankenstein Meets the Wolfman", de 1943.


Assim, com vampiros, Frankensteins (criador e criatura), homem-lobo, um ajudante demente e necrófilo (Morpho aparece abusando rapidamente do cadáver da dançarina) e até uma feiticeira cigana (interpretada por Geniève Deloir), tudo isso no mesmo filme, DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN lembra menos os filmes da Universal que Jess tentou homenagear e mais as maluquices do cinema mexicano, que, em aventuras absurdas como "Santo y Blue Demon vs Drácula y el Hombre Lobo" (1973), costumava reunir todo tipo de monstros e personagens exóticos. O clima de vale-tudo aqui é o mesmo, e até parece que algum "luchador" mascarado vai invadir o filme de Franco a qualquer momento!


O lado bom do filme é que Jess não deixa o clima de improviso da obra afetar sua criatividade. O roteiro pode até não fazer sentido algum, mas há elementos bem fiéis à mitologia dos monstros apresentados e outros originais inventados pelo próprio diretor-roteirista.

O Dr. Seward, por exemplo, aqui assume o papel de Van Helsing como nêmesis de Drácula. O personagem já existia no livro de Bram Stoker, onde era o chefe da clínica em que o maluco Reinfield estava internado. Aqui, Seward também chefia uma clínica e cuida de uma jovem paciente, Maria (Paca Gabaldón), que é praticamente uma versão feminina de Reinfield (só não come insetos).


Franco não deixa de criar sua própria mitologia. Além do seu Drácula andar normalmente à luz do sol sem se desintegrar, há uma cena muito interessante em que o Dr. Seward é chamado para examinar uma das vítimas do vampiro. Usando uma lente de aumento, ele enxerga a figura de um morcego na retina da morta (!!!), e neste momento entende que ela está condenada a se transformar numa criatura idêntica. Para destruí-la, ao invés da tradicional estaca no coração, o médico usa um prego enfiado no olho - a mesma maneira de destruir vampiros já apresentada por Jess em "Vampyros Lesbos", onde é a destruição do cérebro, e não do coração, que mata os sugadores de sangue! Fãs xiitas de vampiros certamente vão reclamar, mas eu confesso que achei essa ideia bem legal, e inclusive aproxima vampiros de zumbis, pelo menos na maneira de matá-los (e não são todos mortos-vivos, afinal?).


A trilha sonora de DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN poderá soar familiar para fãs da obra de Jess. Isso porque o diretor reaproveitou uma música composta por Bruno Nicolai para o anterior "Santuário Mortal" (1969), aquela que toca nas cenas em que o Marquês de Sade, interpretado por Klaus Kinski, aparece na prisão.

O curioso é que a referida música funciona muito melhor aqui do que no outro filme, então sua reutilização não soa tão ruim. Outras partes da trilha foram compostas pelo colaborador habitual Daniel J. White (que também aparece numa ponta como o dono do cabaré).


Se os monstros principais aparecem mal-caracterizados, pelo menos Franco contou com dois ótimos atores para fazer os médicos em lados opostos, Dalbés como o bonzinho Dr. Seward e Price como o malvado Dr. Frankenstein. Infelizmente, faltou um confronto entre eles. Eu até desconfio que suas cenas foram filmadas em locais e épocas diferentes, já que Dalbés e Price nunca dividem o mesmo take.

No caso de Price, vale ressaltar que o ator estava em fim de carreira e cada vez mais entregue ao alcoolismo. É visível, em todas as suas aparições, que ele mal consegue ficar de pé e precisa se apoiar em paredes ou objetos de cena. Achei que fosse por problemas de idade, mas o próprio Franco disse, numa entrevista, que Price começava a tomar brandy logo que acordava, às seis da manha, e ao meio-dia já estava se arrastando, completamente mamado!


DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN foi filmado parte na Espanha, parte em Portugal. Nesse último foram usadas belíssimas locações históricas, com o Museu-Biblioteca Condes de Castro Guimarães, em Cascais, virando a clínica do Dr. Seward, e o velho Castelo dos Mouros, em Sintra, se transformando na morada de Drácula.

Quando viajei para Portugal, alguns anos atrás, passei por estas duas cidades e vi os cenários in loco. Felizmente, não encontrei nem Drácula e nem Frankenstein por lá; infelizmente, não encontrei nem a Britt Nichols!

O Castelo de Drácula no filme e o dos Mouros em 2009

A clínica do Dr. Seward e a fonte do museu em Cascais

Por falar em Britt Nichols, muitos fãs da atriz (e do cinema safado de Franco) ficarão decepcionados com o fato de ela não aparecer nua aqui, embora faça isso com frequência em outros filmes do diretor. A bem da verdade, não há uma única cena de nudez no filme inteiro, e o máximo de safadeza é um número de dança no cabaré - mas também sem mostrar nada!

Pela curta duração do filme (78 minutos), muitos pesquisadores argumentam que deve existir alguma versão de DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN com cenas de nudez e/ou sexo, que teriam sido cortadas na montagem atualmente em circulação.

O fato de o filme ser co-produzido por Robert de Nesle, que adorava enxertar cenas de sexo (até explícito!) nas obras de Jess que bancou, reforça essa possibilidade. Esperemos, portanto, que qualquer dia apareça uma versão alternativa em que as vítimas de Drácula e a prórpia Britt estejam nuas.


Hoje, a única versão diferente existente é a norte-americana, em que foram inseridos vários diálogos em off nas cenas originalmente silenciosas, para tentar explicar melhor a história - e, quem sabe, quebrar aquele climão introspectivo do original.

O mais engraçado dessa montagem ianque é que os caras chegaram a incluir um letreiro narrado, NO MEIO DO FILME, como se fosse um trecho do diário do Dr. Frankenstein, recapitulando tudo que aconteceu na trama até então (imagem abaixo)! Este trecho aparece como extra no DVD importado do filme.


No ano seguinte (1972), Jess lançaria mais dois filmes envolvendo Drácula e Frankenstein. São eles "La Fille de Dracula" e "La Maldición de Frankenstein" (também conhecido como "Les Expériences Érotiques de Frankenstein"!!!).

O fato de quase todos os atores deste aqui reaparecerem em um deles ou em ambos - Britt Nichols, Anne Libert, Alberto Dalbes, Fernando Bilbao, Howard Vernon, Luis Barboo e até Dennis Price, novamente como Dr. Frankenstein! - pode sinalizar que eles foram feitos às pressas (ou improvisados) durante ou logo depois das filmagens de DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN!


Este aqui, entretanto, é o melhor da "trilogia", mesmo com seus diversos problemas. Sem a putaria habitual de Franco, e com menos das suas doidices estéticas e narrativas, também é um dos seus trabalhos mais fáceis de acompanhar, principalmente para quem não é muito chegado no estilo do diretor - desde que sobreviva ao clima lento e quietão do filme.

Mas, obviamente, a "homenagem aos clássicos da Universal" não foi bem recebida na época do seu lançamento, quando eram os vampiros e Frankensteins da Hammer que ditavam as tendências. Bastante criticado na época, DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN só começou a ser reavaliado mais recentemente, e há até quem considere uma contribuição bem decente à filmografia destes personagens.

Digamos que, em tempos de "Crepúsculo" e "Frankenstein: Entre Anjos e Demônios", os monstros à moda antiga de Jess Franco nunca pareceram tão bons - por mais pobretões e mambembes que sejam!


DRACULA CONTRA FRANKENSTEIN em 2 minutos!



***********************************************************
Dracula Contra Frankenstein/ 

Dracula, Prisoner of Frankenstein
(1971, Espanha/França/Portugal/Liechtenstein)

Direção: Jess Franco
Elenco: Dennis Price, Alberto Dalbés, Howard Vernon,
Britt Nichols, Paca Gabaldón (aka Mary Francis), 

Geniève Deloir, Luis Barboo e Fernando Bilbao.

CARTES SUR TABLE (1966)

$
0
0

Das ironias do mundo do cinema: no começo dos anos 1960, quando Harry Saltzman e Albert R. Broccoli decidiram adaptar para o cinema as aventuras de James Bond escritas por Ian Fleming, ouviram um "não" de dezenas de estúdios, diretores e atores. Mas foi só o "O Satânico Dr. No" (1962) sair, e revelar-se um grande sucesso de bilheteria, para que todo mundo começasse a correr atrás do atraso, tentando faturar em cima da febre.

Após o sucesso de "007 Contra Goldfinger" (1964), produtores italianos, espanhóis e franceses (principalmente estes) deram início à realização em escala industrial de cópias das aventuras de James Bond, num ciclo que ficou conhecido como "Eurospy". E tome agentes secretos com códigos numéricos: "A 001, Operazione Giamaica" (1965, dir: Ernst R. von Theumer), "Agent 077 - From the Orient with Fury" (1965, dir: Sergio Grieco), "A 008, Operation Sterminio" (1965, dir: Umberto Lenzi), "Agente X 1-7: Operazione Oceano" (1965, dir: Tanio Boccia), "Agente 3S3: Passaporto per l'inferno" (1965, dir: Sergio Sollima), as diversas aventuras francesas do agente OSS 117 (que é ANTERIOR ao "O Satânico Dr. No"), e por aí afora.


E o que Jess Franco tem a ver com o pastel?

Bem, inicialmente ele foi uma vítima da febre, já que um thriller de espionagem que dirigiu em 1962, chamado "La Morte Silba un Blues" e sem nenhuma relação com James Bond, acabou sendo lançado pelos distribuidores franceses com o título "Agent 077: Opération Jamaïque" (veja abaixo).

Até o ator principal deste filme, Conrado San Martín, ganhou um nome artístico americanizado, "Sean Martin", remetendo tanto a Sean Connery quanto a Dean Martin (que, na mesma época, interpretava Matt Helm, outro espião famoso adaptado para o cinema).

Repare na "pequena alteração" nos cartazes e no nome do astro!

Em 1965, que provavelmente foi o ano do pico da produção dos Eurospies, Jess também ganhou uns trocos para reescrever seu roteiro de "La Morte Silba un Blues" como uma aventura de espiões mais popular, que se transformou na aventura ítalo-franco-espanhola "Da 077: Intrigo a Lisbona", dirigida por Tulio Demicheli.

No ano seguinte, foi a vez do próprio Franco aventurar-se pelo ciclo. Numa tacada só, rodou três filmes de espionagem em tom de farsa, que não se levavam muito a sério, e ao mesmo tempo reciclavam e parodiavam clichês das aventuras de James Bond, Matt Helm, Derek Flint e suas imitações. O primeiro, que nos interessa no momento, foi CARTES SUR TABLE (1966), e os demais são "Residencia para Espías" e "Lucky, El Intrepido" (estes lançados em 1967). Nos anos seguintes, ele ainda faria mais algumas produções nessa linha.


Tanto CARTES SUR TABLE ("Cartas na Mesa", em tradução literal) quanto "Residencia para Espías" foram estrelados pelo norte-americano Eddie Constantine (1913-1993), que, na época, era um super-astro na França. Constantine já era um cantor bastante popular quando estreou no cinema, e caiu nas graças do público francês ao estrelar aventuras do detetive Lemmy Caution, um personagem criado pelo escritor inglês Peter Cheyney.

Seu primeiro filme no papel do herói foi "Brotinho Venenoso" ("La Môme Vert de Gris", 1953), e depois Constantine faria mais 12 filmes e dois episódios de série de TV interpretando Lemmy Caution, sendo que dois deles eram "filmes de arte" dirigidos por Jean-Luc Godard ("Alphaville", de 1965, e "Allemagne 90 Neuf Zéro", de 1991).


Em CARTES SUR TABLE, Constantine interpreta o espião Al Pereira, criação do próprio Franco - cujo nome é uma homenagem ao diretor de arte de Hollywood Hal Pereira, que trabalhou em clássicos como "Os Brutos Também Amam", "A Guerra dos Mundos" e diversos filmes de Alfred Hitchcock. Vale lembrar que, no áudio original francês, o sobrenome é pronunciado como "Pehehá" (para facilitar, o nome foi alterado para "Al Peterson" na dublagem em inglês).

A história começa com vários assassinatos de líderes religiosos e políticos ao redor do mundo, sempre cometidos por meio de ataques praticamente suicidas realizados por misteriosos matadores de pele acobreada e usando óculos. Quando um deles é preso pela polícia, não fala coisa com coisa; ao recolocar os óculos, entretanto, torna-se agressivo e tenta fugir, sendo baleado e morto.


É quando a Scotland Yard descobre que o homem havia desaparecido dois anos antes em Alicante, na Espanha. E, assim como outras pessoas que sumiram sem deixar pistas naquela mesma região, tem um fator sanguíneo bastante raro chamado "Rhesus Zero", o equivalente a O positivo e negativo ao mesmo tempo!

(Não precisa ser formado em Medicina para saber que não existe tal coisa, mas os roteiristas precisavam de alguma anomalia científica para justificar a escolha dos candidatos a matador, conforme veremos mais adiante. Saiba, portanto, que é preciso fechar um olho para o fator realismo ao encarar o filme, se é que alguém realmente espera realismo em uma aventura dessas...)


Acreditando que todos esses fatores têm uma relação, a Scotland Yard resolve recrutar o único de seus espiões que tem o tal sangue raro, para investigar o que acontece em Alicante.

O candidato em questão é Al Pereira; só que, sem que ele saiba, seus superiores resolvem mandá-lo para a Espanha numa missão falsa, esperando que ele seja sequestrado, como os demais desaparecidos, enquanto outros agentes secretos mais habilidosos seguem a pista dos vilões! Sacanagem, não?


Sem desconfiar de nada, Pereira pega seus gadgets à la James Bond e parte para a Espanha, onde descobrirá, quase sem querer, que os tais assassinos são pessoas comuns transformadas em autômatos, controlados por sinais de rádio enviados pelos óculos que usam. O responsável por isso é o típico cientista louco de filmes do 007, Sir Percy (Fernando Rey), e somente quem tem o raríssimo fator "Rhesus Zero" pode passar pelo processo de transformação (ah, bom...).

Para complicar um pouquinho a história, Pereira também é recrutado "à força" por uma quadrilha de chineses, liderada por Lee Wee (Vicente Roca), que tem grande interesse no tal sistema de controle cerebral. Como todo bom agente secreto, o herói também se envolverá com todo tipo de femme fatales, incluindo a dançarina Cynthia Lewis (a francesa Sophie Hardy), que pode ser um agente duplo.


Como a maioria dos trabalhos da "fase clássica" de Jess Franco, CARTES SUR TABLE pode ser surpreendente para quem só conhece as tranqueiras que ele fez de 1980 em diante. Afinal, a narrativa é mais "comportada" e o visual é deslumbrante, com belissima fotografia de Antonio Macasoli (dê uma espiada nas imagens abaixo), sem nem sinal do excesso de "zooms" e câmera esquizofrênica que os detratores do diretor apontam como grandes defeitos dos ses trabalhos posteriores.

Também ajuda o fato de o roteiro ter sido escrito em parceria com Jean-Claude Carrière, que já havia assinado o anterior e excelente "Miss Muerte". Ele é mais conhecido como roteirista dos clássicos de Luis Buñuel, tipo "O Fantasma da Liberdade" e "O Discreto Charme da Burguesia". Por isso, muito fã de cinema de arte certamente vai surtar ao descobrir que o homem também trabalhou com o "maldito" Jess Franco!


O roteiro de Franco e Carrière é bastante fiel ao clima de "pulp fiction" das aventuras de espionagem da época, com sucessivas traições, perseguições, tiroteios, mulheres fatais e até bandidos orientais (coisa muito em voga na ficção de gênero da época), mais a bem-vinda inclusão de toques de ficção científica, com os autômatos controlados por ondas de rádio (um detalhe que já havia sido enfocado por ambos no anterior "Miss Muerte").

O melhor é que a dupla também parece não estar levando a coisa tão a sério, ou menos a sério do que as aventuras de James Bond e muitos de seus imitadores. Lá pelas tantas, aparece até um agente mirim (interpretado por Lemmy Constantine, filho do astro), que usa seu carrinho de brinquedo como walkie-talkie!


Numa cena genial, Pereira recebe seus gadgets - coisas como luvas eletrificadas e um charuto que solta gás venenoso - e questiona seus superiores quanto ao fato de aqueles equipamentos oferecerem perigo também a ele mesmo. Afinal, uma das armas é um guarda-chuva que, quando aberto, explode!
- E eu vou ter que andar com isso pela Espanha? - ironiza Pereira.
- Somente em dias de chuva.
- Mas, se chover, eu não posso abri-lo!
- Claro que não, porque aí ele explode!


Outro momento fantástico em que CARTES SUR TABLE investe no humor acontece quando dois grupos distintos de vilões (os chineses e os autômatos de Sir Percy) resolvem armar uma emboscada para Pereira em seu quarto de hotel NA MESMA HORA. Acaba explodindo a maior briga entre os bandidos, com um grupo matando o outro.

Para piorar, quando o herói volta ao quarto, precisa esconder os cadáveres espalhados por toda parte para que eles não atrapalhem a noite de amor que terá com a dançarina Cynthia! Uma cena genial, que você definitivamente não verá num filme de James Bond!


Por falar em Bond, embora Al Pereira tenha sido construído a partir das mesmas bases de Sean Connery em "O Satânico Dr. No" e aventuras seguintes (ele é apresentado usando smoking e jogando num cassino, tem gadgets, pega a mulherada, fuma um cigarro atrás do outro), ao mesmo tempo ele é radicalmente diferente do seu colega 007.

Por exemplo, Pereira não é tão seguro de si e nem se diverte tanto quanto Bond em suas missões; pelo contrário, o herói aqui parece de saco cheio da vida de espião e louco para abandonar tudo. Ele também não toma nenhum "martini batido, mas não mexido", e aparenta estar em tratamento de alcoolismo (em certo momento, até aparece bebendo Coca-Cola!).

Tampouco tem o mesmo glamour em matéria de veículos: ao invés de um Aston Martini para dar rolê e pegar as gatinhas, o espião encara um busão lotado e caindo aos pedaços na sua chegada em Alicante - mas mesmo assim joga charme para cima da Bond Girl, ou "Pereira Girl"! Só esses toques cômicos já valem o filme.


Constantine está muito bem como agente secreto, e vendo o filme hoje dá para entender porque ele era tão popular na Europa da época: o ator tem um quê de Humprey Bogart, intercalando charme cínico, simpatia e bom humor. Numa realidade alternativa, talvez até fizesse um ótimo James Bond francês, e não inglês.

Inclusive o próprio Franco deve ter adorado trabalhar com o ator, já que, em várias entrevistas da época, Jess dizia que seus diretores preferidos eram Godard e John Ford, e Constantine havia recém saído de "Alphaville", que foi dirigido por Godard. Devem ter rolado várias conversas entre diretor e astro nos bastidores.


O único ponto fraco de CARTES SUR TABLE, em comparação com as aventuras de James Bond que homenageia/cita/satiriza, é a falta de um vilão mais expressivo. O ótimo Fernando Rey até impõe algum respeito como Sir Percy, o fabricante de autômatos. E vive num enorme esconderijo cheio de maquinário de alta tecnologia (para a época) e capangas armados, como convém a um adversário do gênero. Infelizmente, o personagem aparece muito pouco e não faz nada de memorável nestas poucas aparições. Assim, quem acaba brilhando em seu lugar é o braço direito de Percy, Lady Cecilia (Françoise Brion), que tenta seduzir o herói duas vezes e entra naquela categoria "capanga sedutora do vilão", elemento tão comum nos filmes de 007.


Há um enigma que persiste até hoje envolvendo CARTES SUR TABLE: embora todas as cópias existentes sejam em preto-e-branco, alguns pesquisadores defendem que Franco rodou as cenas usando filme colorido, mas o laboratório converteu tudo para preto-e-branco na pós-produção a mando dos produtores, que queriam aproveitar que os "filmes noir" estavam na moda graças ao já citado "Alphaville".

Tem dois bons argumentos para embasar essa teoria. Primeiro, o fato de o segundo filme de Jess com Constantine, "Residencia para Espías", filmado logo em seguida, ser colorido. E em segundo lugar, um elemento importante da própria trama: os autômatos de pele acobreada "desbotam" ao morrer e ficam com o rosto pálido, mas obviamente tal mudança de coloração aparece de maneira bem sutil na fotografia em preto-e-branco (em cores se notaria muito mais facilmente).


Embora esta seja a única vez que Eddie Constantine interpretou Al Pereira, Franco continuou escrevendo e dirigindo novas aventuras do personagem nos anos seguintes. De agente secreto ele foi virando detetive particular e até explorador da selva, conforme a necessidade.

No lugar de Constantine, Howard Vernon, Olivier Mathot, o próprio Franco e Antonio Mayans assumiram o papel. O espanhol Mayans foi quem mais vezes encarou Al Pereira (seis ao todo), incluindo os dois últimos filmes dirigidos por Jess Franco, "Al Pereira vs. the Alligator Ladies" (2012) e "Revenge of the Alligator Ladies" (2013).

Na sua fase mais "vale-tudo", na década de 80, Jess fez uma refilmagem "disfarçada" deste filme, chamada "Viaje a Bangkok, Ataúd Incluido" (1985), com a mesma história dos assassinatos políticos cometidos por autômatos controlados à distância (nesta versão, eles inclusive são cegos!). Mas tal reboot não é nem de longe tão divertido quanto o "original".


Além de uma bela contribuição "Franquiana" para o ciclo dos Eurospies, e de um veículo perfeito para o cultuado Eddie Constantine brilhar entre seus fãs franceses (o filme foi muito mal lançado no resto do mundo), CARTES SUR TABLE também é um belíssimo argumento para você esfregar na cara daquele seu amigo cinéfilo chato que vive falando que Jess Franco não entende porra nenhuma de cinema.

Afinal, o filme não apenas é bem produzido, bem filmado, bem interpretado e BEM DIVERTIDO, mas também tem um ator cult que trabalhou com Godard no papel principal e um roteirista que trabalhou com Buñuel - uma combinação pra cinéfilo chato nenhum botar defeito!

PS: Numa cena em que Cynthia se apresenta no palco de uma boate, o pianista da banda de jazz que está se apresentando é o próprio Jess Franco (ele pode ser visto numa das imagens desta resenha).


Trailer de CARTES SUR TABLE



***********************************************************
Cartes sur Table / Attack of the Robots
(1966, Espanha/França)

Direção: Jess Franco
Elenco: Eddie Constantine, Françoise Brion, Sophie
Hardy, Fernando Rey, Alfredo Mayo, Vicente Roca,
Ricardo Palacios, Dina Loy e Mara Lasso.

O MASSACRE DOS BARBYS (1996)

$
0
0

A década de 1990 não foi das melhores para Jess Franco.

Por aqueles anos, vários dos seus antigos colaboradores começaram a morrer, incluindo seu ator-fetiche Howard Vernon, seu antigo produtor Karl Heinz Mannchen e os compositores Daniel J. White e Bruno Nicolai.

Houve também uma mudança de mercado: se antes os filmes classe Z que ele vinha dirigindo encontravam espaço em pequenos cinemas de bairro, a partir dos anos 90 essas obras não conseguiam mais exibição e começaram a sair direto em vídeo (algumas mal foram distribuídas fora da Europa).

Para piorar, na virada das décadas, Franco quebrou o pau com seus financiadores mais antigos (os irmãos Marius e Daniel Lesoeur, da produtora francesa Eurociné), durante a pós-produção do insosso drama de guerra "La Chute des Aigles / Fall of the Eagles" (1990), que se tornaria seu último trabalho para a empresa - e um dos mais fracos, apesar do curioso elenco que reunia Christopher Lee e Mark Hamill!

Assim, depois de mais dois filmes rodados a muito custo na Espanha e co-produzidos pelo próprio diretor, um deles nunca finalizado e nunca lançado ("La Jungla del Miedo", de 1994, inspirado no conto "O Escaravelho de Ouro", de Edgar Allan Poe), a carreira de Jess teve um hiato de dois anos sem trabalhar, entre 1994 e 1996 - algo inacreditável para alguém que, nos bons tempos, fazia de cinco a oito filmes POR ANO.

Parecia que o velho Jess Franco, então com 66 anos de idade, estava destinado a uma aposentadoria forçada...


É nesse ponto que entra na história uma banda punk espanhola chamada The Killer Barbies, fundada em 1994 (coincidentemente o ano em que Jess parou de filmar) por Silvia Superstar (Silvia García Pintos, na certidão de batismo) e Billy King (nome verdadeiro: Antonio Domínguez), respectivamente vocalista e baterista do grupo.

Seguindo uma proposta pouco original que já vinha sendo desenvolvida por bandas bem mais famosas (como Misfits e White Zombie), a The Killer Barbies se inspirava no cinema de horror classe B e na cultura trash dos filmes da Troma e de John Waters para fazer seus figurinos e músicas - que têm títulos como "They Come From Mars", "Family is Chainsaw" e "I Wanna Live in Tromaville".


Não se sabe exatamente como Jess Franco tomou conhecimento da existência da The Killer Barbies, já que ele não me parece um sujeito que teria afinidade com a cena punk independente espanhola da década de noventa.

Seja como for, o diretor ouviu o primeiro CD da banda ("Dressed to Kiss", 1995) e resolveu que iria encaixá-los no projeto que estava preparando justamente para sair da aposentadoria. Assim nasceu KILLER BARBYS, rebatizado O MASSACRE DOS BARBYS no Brasil. O nome da banda foi alterado apenas no título, de "Barbies" para "Barbys", para evitar problemas judiciais com a Mattel, a empresa fabricante da famosa boneca.


O roteiro que o próprio Franco já vinha preparando não tinha nada a ver com bandas de punk rock: era sobre turistas que erravam o caminho e iam parar no tradicional castelo sinistro. Quando a The Killer Barbies entrou na jogada, Jess adaptou a trama para encaixar a própria banda no lugar dos anônimos turistas.

Assim, os Barbies ganharam uma distinção normalmente reservada a bandas e cantores bem conhecidos (para citar alguns exemplos: Beatles, Kiss, Ramones, Roberto Carlos, Alice Cooper ou Spice Girls), que é a de estrelar um filme próprio "interpretando" eles mesmos!


Acabou sendo um bom negócio para ambos. Jess Franco conseguiu voltar ao mercado, pois a participação de uma banda razoavelmente conhecida na Espanha e países vizinhos atraiu um novo público que não estava interessado nas presepadas que ele vinha filmando nos últimos tempos.

Para os Barbies, foi não só a oportunidade de fazer um filme com um diretor cult que admiravam, mas ainda uma incrível auto-promoção, já que a banda aparece no palco e "atuando", e suas músicas tocam o filme inteiro. Uma delas, "Love Killer", chega a repetir cinco vezes, pelo menos enquanto eu ainda estava contando!


O MASSACRE DOS BARBYS começa com um show da banda, que aparece com dois de seus integrantes reais (Silvia e Billy) e outros três fictícios, o baixista Mario (Charlie S. Chaplin, que, segundo a lenda, seria parente distante de Charles Chaplin), o guitarrista Rafa (Carlos Subterfuge) e a go go dancer Sharon (Angie Barea).

A vocalista gracinha aparece cantando apenas de biquíni, e a banda toca duas músicas bem curtinhas (punk rock, sabe como é...), sendo que uma delas é a tal "Love Killer". Prepare-se para decorar a letra ("I love you / I love you / I gonna kill you tonight!") antes da metade do filme, de tanto que ela vai tocar pela próxima meia hora...


Depois do show, o grupo cai na estrada, em sua van personalizada, rumo a uma cidade próxima, onde farão apresentação no dia seguinte. Porém, como O MASSACRE DOS BARBYS é um filme de horror, é claro que os músicos vão pegar um atalho suspeito no meio da madrugada e acabar numa estrada deserta, onde eventualmente a van apresentará problemas.

É quando aparece um homem bem vestido e solícito chamado Arkan (o veterano Aldo Sambrell), que oferece comida e um teto para os Barbies (ou "Barbys") passarem a noite enquanto esperam a chegada do mecânico no dia seguinte.


A maior parte da banda aceita o convite - eles podem se declarar fãs de horror, mas pelo jeito não aprenderam nada nos filmes que viram! -, enquanto dois deles, Rafa e Sharon, preferem ficar na van transando sem parar.

Arkan leva os músicos restantes até um casarão típico de filme de terror, com muita neblina do lado de fora e diversos objetos de cena bem suspeitos do lado de dentro (incluindo quadros antigos e sinistros). Ali mora a misteriosa Condessa Von Fledermaus (palavra alemã para "morcego"), que, segundo Arkan, é uma mulher muito doente e vive acamada.


Pelo restante da noite, os músicos ficarão zanzando pelo interior do casarão falando e fazendo idiotices, enquanto Arkan e um excêntrico aliado, Baltasar (o ator-diretor cult Santiago Segura, de "O Dia da Besta" e da série "Torrente"), planejam o anunciado "Massacre dos Barbys" do título em português.

Acontece que a tal Condessa Von Fledermaus descobriu o segredo para a vida e juventude eternas: uma mistura de sangue e esperma retirados direto da fonte! E adivinhe quem serão os próximos "doadores"?


O resultado desta autêntica brincadeira musical é bastante irregular: O MASSACRE DOS BARBYS tem mais cara de ser um grande videoclipão ou music video em que alguém resolveu colocar uma história para enrolar entre uma música e outra - como se você pegasse o famoso clipe "Thriller", do Michael Jackson, e filmasse uma hora adicional com personagens fazendo e falando bobagem antes da música começar.

Sendo Jess Franco um grande fã de música, e ele mesmo um músico (tocava piano e trompete semi-profissionalmente), é bem vagabunda a forma como o som da The Killer Barbies é aproveitado no filme. Embora a própria banda apareça como protagonistas, raramente eles são vistos cantando ou tocando; a música simplesmente toca no fundo das cenas, de maneira repetitiva e sem muito critério.


Como se fosse um autêntico videoclipe, há um distanciamento muito grande (talvez proposital, talvez não) entre a banda e tudo que acontece com eles. Jess não parece muito inspirado e simplesmente vai jogando na tela os elementos e clichês mais diversos (vampirismo, vida eterna, slasher movies, casarão sinistro, canibalismo, direção de arte bizarra e até anões!), torcendo para o conjunto dar certo no final.

Mas não dá tão certo assim, já que não há um mínimo de tensão ou suspense, e o filme demora uma eternidade para começar a engrenar. Sem saber o que fazer com seus protagonistas, Franco precisa enrolar do jeito que dá: a interação entre os Barbies é mínima, e deles com os outros personagens menor ainda. Por isso, o espectador não consegue criar qualquer vínculo com os personagens ou se importar com o que vê. E há erros infantis dignos de Ed Wood, tipo noite que vira dia e vice-versa.


Chega um ponto em que O MASSACRE DOS BARBYS começa a se tornar arrastado e realmente estúpido. Por exemplo, há uma cena em que o casal que trepa na van é espionado por Baltasar e seus anões, mas eles não fazem nada além de espiar. Aí os namorados resolvem sair da van e caminhar até o casarão para encontrar os amigos. Finalmente, o mesmo casal volta para a van (de onde só saiu para esticar a história) e RECOMEÇA A TREPAR, quando finalmente são atacados e mortos por Baltasar e Arkan! É mole?

Aliás, considerando que o grande plano dos vilões é matar os jovens desde o começo para alimentar a Condessa, demora uma eternidade para que algo nesse sentido finalmente aconteça, pois Arkan prefere deixar os protagonistas à vontade para zanzar pela casarão, tomar banho, dormir, mexer na mobília, e até os convida para jantar! Mata logo enquanto eles estão separados, caramba!


Jess nunca foi considerado um cineasta "gore", e tem pouquíssimos filmes realmente sangrentos/violentos no seu currículo ("Jack The Ripper", "Bloody Moon" e "Sem Face" são os principais representantes da categoria).

O MASSACRE DOS BARBYS felizmente traz uma boa dose de violência explícita e efeitos de maquiagem, com cabeças cortadas, cérebros arrancados e corpos pendurados em ganchos de carne. Nem todos os efeitos são convincentes, mas já é alguma coisa.


Na época do lançamento de "Arraste-me para o Inferno" (2009), de Sam Raimi, muito foi dito sobre uma cena em que a fantasma é atingida na cabeça por uma bigorna, e como isso remetia ao clima absurdo dos desenhos animados. Houve até quem chamasse Raimi de "gênio" por causa da cena, embora eu ache o filme bem meia-boca.

Pois O MASSACRE DOS BARBYS já traz uma brincadeira semelhante com o universo dos desenhos animados mais de dez anos antes de Raimi e sua bigorna, que é quando Billy King mata um dos vilões atropelando-o com... um rolo compressor?!? E não me pergunte onde foi que o sujeito encontrou um rolo compressor, o que importa é que Franco mostra até o cadáver achatado e ensanguentado da vítima depois do atropelamento, como se fosse uma versão da Troma para um desenho dos Looney Tunes!


Além da violência, Jess não perde a oportunidade de pelar a mulherada. Só a estrelinha Silvia Superstar aparentemente não quis fazer cenas de nudez - o que é irônico, já que ela posa o tempo todo de liberal e sex symbol. Mas o diretor compensa colocando-a sempre com as roupas mais curtas possíveis, e ela também passa toda a metade final correndo pra lá e pra lá apenas de calcinha vermelha e blusa cortada em cima do umbigo.

As outras duas mulheres do elenco não regulam: a go go dancer interpretada por Angie Barea inclusive protagoniza uma das grandes cenas do filme, quando é perseguida por Baltasar e Arkan e precisa correr completamente pelada pela floresta, vestindo apenas botas prateadas!


A grande surpresa é a nudez da terceira representante feminina de O MASSACRE DOS BARBYS, que é a própria Condessa Von Fledermaus, interpretada por... Mariangela Giordano! Caso não tenha caído a ficha, Mariangela é uma veterana atriz italiana que já havia mostrado o corpão em clássicos do cine-podreira dos anos 70-80 como "Patrick Vive Ancora", de Mario Landi, e principalmente "Burial Ground", de Andrea Bianchi, em que protagoniza uma famosíssima cena em que tem o seio arrancado a dentadas pelo próprio filho zumbificado!

À época das filmagens, a atriz já estava com 59 anos. Porém, sem nenhuma frescura, Mariangela comprova que continua em forma e aparece peladona frente e verso, dando um banho nas duas "molequinhas" com quem divide os créditos. Se a tal poção da juventude eterna utilizada pela Condessa do filme realmente existe, então Mariangela Giordano certamente a conhece!


No fim, O MASSACRE DOS BARBYS passa longe de ser um grande filme (e mesmo de um memorável), mas acho que vale simplesmente por reunir tanta gente boa e diferente num mesmo projeto - Franco, os Barbies, Sambrell, Santiago Segura e, claro, a deusa Mariangela Giordano. Definitivamente, não é o tipo de coisa que se vê todos os dias.

Também é legal ver os músicos entrando no espírito da coisa, se sujando de sangue falso e até aparecendo com pouca roupa. Isso me lembrou a hilária participação da banda punk Offspring em "A Mão Assassina" (1999), quando o vocalista Dexter Holland tem seu escalpo arrancado pela dita cuja.


Apesar de ter recebido um lançamento limitado nos cinemas (foi o último filme de Franco na telona até 2013 e "Al Pereira Vs. the Alligator Ladies"), o resultado não chegou a dar o esperado upgrade na carreira de Jess. Inclusive este foi um dos últimos filmes que ele rodou em película, junto com o posterior "Tender Flesh", de 1997.

A partir de 1998, Franco começaria a sua fase mais fraquinha (que durou até sua morte, em 2013), quando gravou mais de 20 filmes em vídeo digital, com produção paupérrima, para lançamento direto em DVD. Pouco ou nada de bom saiu dali, e o diretor abandonou a narrativa convencional para entregar-se a produções mais experimentais e pouco memoráveis.


Jess e os Barbies voltariam a trabalhar juntos nessa fase negra, em "Killer Barbys vs. Dracula", filmado em 2002. Se O MASSACRE DOS BARBYS já tinha cara de music video, este segundo trabalho assume-se como um: simplesmente mostra cenas de um show da banda enquanto um ator vestido como Drácula fica zanzando pelo cenário. Sem contar que todas as cenas foram filmadas de dia e depois "escurecidas" através de um efeito digital vagabundo. O único mérito de "Killer Barbys vs. Dracula"é trazer no elenco outro veterano do cinema italiano, Peter Martell (nome de batismo: Pietro Martellanza), que era astro nos tempos do western spaghetti e estava completamente esquecido. Ele faleceu em 2010.


Embora passe longe de ser um filme bom, O MASSACRE DOS BARBYSé, provavelmente, o último trabalho assistível de Jess Franco, antes da sua prolixa fase experimental e de bombas tipo "Lust for Frankenstein" (1998) e "Dr. Wong's Virtual Hell" (1999). Visto com pouca ou nenhuma expectativa, pode divertir e até surpreender.

Se não pela história cheia de clichês e lugares comuns, pelo menos pela presença da The Killer Barbies, sua vocalista gracinha e seu "punk rock pop" divertido e grudento. É realmente muito difícil não sair cantarolando "Love Killer" depois das inúmeras vezes que a música toca, e o refrão "I love you / I love you / I gonna kill you tonight!"acaba sendo mais memorável que o próprio filme!

PS: Lina Romay, esposa e musa do diretor, assina a edição.


Trailer de O MASSACRE DOS BARBYS



***********************************************************
Killer Barbys (1996, Espanha)
Direção: Jess Franco
Elenco: The Killer Barbies, Aldo Sambrell, Santiago
Segura, Mariangela Giordano, Pepa López, Alberto
Martínez, Carlos Subterfuge e Angie Barea.

LA SOMBRA DEL JUDOKA CONTRA EL DOCTOR WONG (1984)

$
0
0

Nos anos 1980, de volta à Espanha após um exílio voluntário para escapar da ditadura do General Franco, Jess Franco iniciou uma parceria com a Golden Films International, para quem dirigiu - pelo menos até onde se sabe - 19 filmes dos mais diversos gêneros. Ele tinha total liberdade garantida pelo produtor Emilio Larraga (que não se importava com a história e nem com a qualidade dos filmes, desde que eles ficassem prontos para distribuição), mas orçamentos bem apertados e equipes cada vez mais reduzidas.

Os termos dessa parceria colocaram o velho Jess numa espécie de zona de conforto, fazendo com que ele perdesse o pouco de vergonha na cara que ainda tinha. E assim, para a Golden Films, o diretor realizou algumas das maiores picaretagens da sua numerosa filmografia, como aquela que atende pelo espalhafatoso título de LA SOMBRA DEL JUDOKA CONTRA EL DOCTOR WONG!!!


Infelizmente, LA SOMBRA DEL JUDOKA...é um daqueles títulos raros da filmografia de Jess. Nunca foi lançado em VHS (e muito menos em DVD/blu-ray) em nenhuma parte do mundo, e por isso hoje só circula numa cópia de baixíssima qualidade que foi gravada da TV espanhola sabe-se lá em que década, e em espanhol sem legendas. Para piorar, esta única cópia disponível parece ser a quinta ou sexta gravação feita a partir da fita original, e está quase inassistível (como você pode perceber pelas imagens desta resenha).

Fica difícil avaliar um filme nessas condições, pois é complicado até de enxergar o que se passa durante as cenas mais escuras. Mesmo assim, eu não queria deixar essa atrocidade de fora da MARATONA JESS FRANCO, considerando que é uma daquelas hilárias presepadas que só alguém muito cara-de-pau (como o Franco da década de 80) faria.


Em primeiro lugar, esta é única contribuição do cineasta espanhol para o ciclo "brucesploitation", aquelas produções vagabundas que exploravam o vazio deixado pela morte do astro Bruce Lee, e estreladas por imitadores que convenientemente se chamavam Bruce Le ou Bruce Li para tentar engambelar os espectadores desavisados (lembre-se que estamos falando de uma época sem IMDB e com pouquíssimas fontes de pesquisa sobre estas produções mais obscuras).

O problema é que Jess nunca foi um diretor conhecido pela sua habilidade para filmar cenas de ação. Ou pelo menos não ESSE tipo de ação, se é que vocês me entendem. Então como é que ele se saiu no comando de uma aventura de artes marciais "brucesploitation", mas rodada na Espanha ao invés de em Hong-Kong ou Taiwan?


Bem, é possível que o próprio Franco tivesse noção das suas limitações como diretor de ação. Por isso, em LA SOMBRA DEL JUDOKA... ele preferiu brincar de Godfrey Ho - aquele maluco que fazia filmes de ninjas a partir de cenas de outras produções sem ninjas, lembra?

Para não quebrar a cabeça pensando em como coreografar artes marciais, Jess simplesmente pegou um filme oriental já pronto ("Nu Ying Xiong Fei Che Duo Bao / Seven To One", de 1973), retirou umas cenas e as enxertou no "seu" filme. Simples, não?

Infelizmente, a tal aventura pronta (pôster original ao lado) era estrelada por uma garota (Lingfeng Shangguan), que, na trama, buscava vingança pelo assassinato do seu pai. Ou seja, Franco ainda precisava colocar um Bruce Lee na história para ser um legítimo "brucesploitation"!

A solução foi chamar para o papel principal um jovem ator espanhol, José Llamas, que já havia trabalhado em outros filmes de Jess. Llamas nem oriental era, mas mesmo assim ganhou um novo nome artístico somente para este filme: "Bruce Lyn"!!!

Só havia um "pequeno" problema: o Bruce Lyn de Jess não sabia porcaria nenhuma de artes marciais, e mal conseguia caminhar de forma convincente, quem dirá lutar! Mas tudo bem, o diretor nem se importou com isso e tocou o projeto do mesmo jeito, buscando salvá-lo com as cenas enxertadas do tal filme oriental, e torcendo para ninguém perceber. Deu certo? Ora, é claro que não - e isso talvez explique porque o negócio foi tão mal distribuído!


LA SOMBRA DEL JUDOKA... tem uma trama sem pé nem cabeça escrita pelo próprio Franco (que assina roteiro e direção com seu tradicional pseudônimo "Clifford Brown", em homenagem ao trompetista de jazz homônimo). E se não bastasse acumular tantas funções, Jess ainda reservou para si o papel de grande vilão, o Dr. Wong do título.

Como quase tudo que diz respeito à filmografia do diretor, o ano exato em que ocorreram as filmagens ainda é um mistério - até pela mania que Jess tinha de rodar diversas produções uma atrás da outra, ou ao mesmo tempo. As informações variam conforme a fonte, mas, pelo que pude apurar, o filme teria sido produzido em 1982 e lançado apenas em 1984 (segundo o livro "Obsession: The Films of Jess Franco") ou 1985 (segundo o IMDB).


Espécie de sátira do Fu Manchu (Jess dirigiu dois filmes com o personagem no final dos anos 60, "The Blood of Fu Manchu" e "The Castle of Fu Manchu", ambos estrelados por Christopher Lee), o Dr. Wong é um megalomaníaco gênio do crime que está traficando heroína de Hong-Kong para os Estados Unidos dentro de inocentes bonequinhas.

Para dar a entender que o personagem é oriental, Franco passa o filme inteiro com os olhos meio fechadinhos (!!!) e trocando o "R" pelo "L". Fica bem claro, desde sua primeira cena, que ele não está levando a coisa a sério, ao contrário dos outros atores.


A CIA e a Interpol estão de olho no tal gênio do crime e querem arruinar seu império da droga. Para isso, as duas agências enviam seus melhores homens a Hong-Kong (na verdade, as Ilhas Canárias, na Espanha!).

Por parte da Interpol, temos os agentes Philip Morris (será uma homenagem à famosa fabricante de cigarros, já que Franco era um fumante inveterado?), interpretado por Daniel Katz, e sua parceira Maggie (Lina Romay); já por parte dos ianques, temos o invencível Bruce (!!!), muito possivelmente o pior "clone de Bruce Lee" já inventado!

O que Wong e seus capangas não sabem é que Bruce treinou os segredos mais obscuros das artes marciais e tem o dom sobrenatural de dar vida à sua própria sombra (!!!), que não pode ser atingida e muito menos ferida pelos inimigos, mas ao mesmo tempo desfere golpes bem sólidos contra eles!


Sucedem-se perseguições de carro, traições, alguma sacanagem bem light e muito papo furado. Mas incrivelmente, para um filme que se pretende aventura de artes marciais (e legítimo "brucesploitation"), as lutas são poucas e muito mal dirigidas, de forma que LA SOMBRA DEL JUDOKA... será uma experiência realmente penosa para quem for assistir em busca de ação.

O quesito nudez feminina é garantido com as participações de Lina Romay e de María del Carmen Nieto, aqui usando o pseudônimo "Lia Kaplan" (e não seu tradicional "Mamie Kaplan"). Para quem não lembra, as duas moçoilas dividiram cenas também em "La Mansión de los Muertos Vivientes", entre outras produções dirigidas por Franco na época. María del Carmen interpreta uma assecla do Dr. Wong chamada "Ojos de Miel", que, obviamente, é enviada para seduzir o herói.


A melhor coisa de LA SOMBRA DEL JUDOKA..., e que garante algum interesse a esse filme tosquíssimo em todos os níveis, é a ideia do herói que pode usar a própria sombra para lutar em seu lugar.

Lá pelas tantas, aparecem uns flashbacks (que são cenas tiradas de um outro filme oriental, esse não-identificado) com um velho mestre ensinando Bruce a usar esse poder sobrenatural: "Com a meditação, você pode dominar a matéria com o poder da mente. Concentrando o seu espírito, você pode dar vida à sua sombra".


Não sei exatamente o que Jess havia tomado (ou fumado) quando inventou isso, mas é uma ideia absurdamente genial, principalmente pelo ridículo da coisa toda: ver "atores" adultos tentando bater numa sombra refletida na parede, e fingindo que apanham dela, é algo tão inacreditável quanto hilário!

Pena que o poder de Bruce seja sub-aproveitado. Um sujeito que consegue usar a sombra para bater nos inimigos seria virtualmente invencível (já que os rivais não conseguem "ferir" a sombra), mas o herói só utiliza este dom duas vezes ao longo do filme. E, quando não o faz, apanha que nem cachorro dos inimigos! Numa das cenas de arquivo tiradas de outro lugar, o tal mestre diz para Bruce usar seu poder apenas em último caso, e isso teoricamente justifica o seu uso esporádico. Então tá...


Como já foi dito (escrito), o "Bruce Lyn" de Franco não sabia lutar porcaria nenhuma, e portanto todas as cenas em que ele "luta" por conta própria, sem apelar para a sombra, são de chorar de tão ruins. Ciente das limitações, o diretor preferiu filmar lutas rápidas, que mal duram o som de um "Iááááá!" do verdadeiro Bruce Lee - ou, como li em uma resenha menos elegante em espanhol, "as lutas duram o som de um peido".

O problema é que, na pós-produção, Franco triplicou o tempo de duração dessas lutas rápidas ao colocá-las em câmera lentíssima, embora elas não sejam nem emocionantes, nem bem coreografadas para merecer esse tratamento! Vá entender...


Se o pobre José Llamas não luta nada, tampouco o fazem os figurantes que "interpretam" os capangas do Dr. Wong. Até porque, segundo algumas resenhas, estes figurantes teriam sido recrutados em restaurantes chineses da Espanha (!!!), e só estão no filme porque têm os olhinhos puxados, e não exatamente por seus dons como lutadores.

Os únicos momentos em que LA SOMBRA DEL JUDOKA... apresenta algo minimamente parecido com artes marciais são nas cenas dos filmes orientais pirateadas por Franco. O problema é que esta inserção foi feita sem muito critério: lá pelas tantas, atores orientais aparecem se espancando sem que se saiba quem são ou por que motivo estão brigando, e depois desaparecem da narrativa sem cerimônia, simplesmente porque fazem parte de outro filme (e tenho certeza que, lá neste outro filme, eles tinham algum bom motivo para lutar!).


A exemplo do que Godfrey Ho fazia em Hong-Kong, Jess pegou diversas cenas com a atriz Lingfeng Shangguan em "Seven to One" (acima) e transformou-a em "Tai Lin", suposto contato de Bruce em Hong-Kong na nova história que escreveu. Claro que os dois personagens nunca chegam a contracenar, pois obviamente não fazem parte do mesmo filme.

Mesmo assim, graças à magia da edição e da redublagem, Tai Lin aparece em vários momentos da trama "observando" Bruce ou lamentando a morte de uma outra personagem do filme de Franco! Como eu sempre digo também sobre os filmes de Godfrey Ho e Bruno Mattei, estas picaretagens todas deveriam ter exibição obrigatória em faculdades de cinema, para ensinar aos alunos o verdadeiro poder da edição.


Inclusive o momento mais escalafobético de LA SOMBRA DEL JUDOKA..., e o mais belo exemplo do citado poder da edição, ocorre quando Llamas, nas cenas gravadas por Franco, "luta" com um oriental anônimo em cenas tiradas de outro filme produzido lá em Hong-Kong!!!

É uma daquelas coisas que só vendo para crer (abaixo), porque Llamas "luta" desferindo golpes diretamente contra a câmera no plano, e então a edição corta para o contraplano do tal ator oriental de outro filme "levando" os golpes desferidos por alguém que nem está na mesma produção! Se isso não é o que chamam de "magia do cinema", eu sinceramente não sei o que é...


No fim, a melhor coisa de LA SOMBRA DEL JUDOKA... (além da ideia da sombra que luta no lugar do corpo físico do herói, claro) é a cara-de-pau do pôster de cinema, que traz um desenho do verdadeiro Bruce Lee vestindo seu lendário macacão amarelo dos tempos de "O Jogo da Morte"! Se eu tivesse visto esse pôster na porta de um cinema na época, não pensaria duas vezes em ver o filme.

O resto é muito ruim, mesmo para os (baixos) padrões de Franco nesta época. Ressalte-se, entretanto, que a cópia assistida é realmente sofrível e não permite avaliar decentemente o filme. Talvez ele pareça melhor com imagem e som decentes, como muito western spaghetti que eu vi em cópias ruins nos tempos do VHS e depois me surpreendi ao rever em versões decentes em DVD. Por isso, se um dia aparecer alguma cópia boa desta tranqueira, eu me comprometo a reassistir e rever meu veredicto.


Mas e quanto ao Dr. Wong? Bem, o vilão escapa na conclusão do filme sem sofrer um único arranhão, com direito a ameaça: "O mundo ainda ouvirá falar do Dr. Wong. E muito!". Sabe-se lá se Jess realmente tinha a intenção de fazer novas aventuras com ele ou se quis apenas usar o típico clichê do "vilão que promete voltar para a vingança".

Demorou um pouco, mas o vilão realmente voltou, e mais uma vez interpretado por Franco, no terrível em todos os sentidos "Dr. Wong's Virtual Hell", em 1999, uma das muitas porcarias que o diretor fez na sua fase vale-tudo, quando filmava direto em vídeo digital e sem orçamento. Triste fim para o pobre Dr. Wong...


Já José Llamas, ou "Bruce Lyn", não teve muito futuro como clone de Bruce Lee depois de LA SOMBRA DEL JUDOKA... Não sem motivo, este é o seu único trabalho como "lutador de artes marciais". Depois de mais alguns filmes "normais", Llamas acabou virando ator pornô, aparecendo inclusive em algumas obras para o público adulto dirigidas em parceria por Jess Franco e Lina Romay!

Adotando um novo nome artístico, Pepito Tiésez, o ator estrelou títulos como "Las Chuponas" e "El Ojete de Lulú" (sendo que "Ojete", para quem não sabe, é uma palavra de baixo calão em espanhol para o orifício anal). Depois de algum tempo fazendo essas produções adultas, Llamas sumiu do mapa. Somente muitos anos depois descobriu-se que ele tinha morrido por complicações decorrentes da Aids, em data desconhecida (provavelmente ainda no final dos anos 1980).

Triste fim para o Bruce Lee espanhol, que certamente foi mais convincente fazendo amor como "Pepito Tiésez" do que fazendo guerra como "Bruce Lyn"..



***********************************************************
La Sombra del Judoka Contra el Dr. Wong
(1984, Espanha)

Direção: Jess Franco (aka Clifford Brown)
Elenco: José Llamas (aka Bruce Lyn), Jess Franco,
Lina Romay, María del Carmen Nieto (aka Lia Kaplan)

e Lingfeng Shangguan (em cenas de outro filme).

O TERRÍVEL DR. ORLOFF (1961)

$
0
0

Eu nunca pensei que agradeceria à censura por alguma coisa, mas eis que esse dia chegou! Acontece que, se não fosse pelos censores espanhóis, O TERRÍVEL DR. ORLOFF, primeiro filme de horror dirigido por Jess Franco, provavelmente não existiria - e Jess Franco provavelmente não seria "o" Jess Franco que hoje conhecemos!

No começo dos anos 1960, o jovem Franco já tinha dirigido quatro filmes, sendo uma comédia ("Tenemos 18 Años", 1959), um policial ("Labios Rojos", 1960) e dois musicais ("La Reina del Tabarín" e "Vampiresas 1930", ambos de 1960). Os quatro filmes foram rodados na Espanha por um rapaz que - vejam só que ironia - pouco tempo antes havia sido expulso da faculdade de cinema!

Só que fazer cinema na Espanha estava cada vez mais difícil, pois se intensificava a ditadura imposta pelo General Francisco Franco (que durou entre 1939 e 1976). Jess já havia tido problemas com seu filme de estreia, "Tenemos 18 Años", quando a censura encrencou com uma cena envolvendo um prisioneiro fugitivo. Mas ele não podia imaginar o que viria a seguir.


Acontece que o jovem Jess Franco era um grande admirador de cineastas "de arte", como o francês Jean-Luc Gordard e o italiano Michelangelo Antonioni. Ainda em busca de um estilo próprio, almejava se tornar um diretor "sério" como seus ídolos. Por isso, seu próximo projeto seria uma adaptação do livro "La Rebelión de los Colgados", do escritor anarquista B. Traven (o mesmo autor de "O Tesouro de Sierra Madre", e cuja verdadeira identidade até hoje é um mistério).

O problema é que "La Rebelión de los Colgados" conta a história de trabalhadores escravizados numa fazenda do México que se rebelam contra seus patrões; ou seja, o tipo de trama incentivando o levante popular que o pessoal que estava no poder não queria que você contasse durante uma ditadura!


Cabeçudo como todo jovem cineasta, Jess levou o projeto adiante, mas esbarrou nos censores. Numa entrevista de 2009 ao blog El Franconomicon, ele relatou o que aconteceu: "Foi uma armadilha desde o início. O Ministério não me disse 'não' no início, apenas me trataram como se eu fosse um garotinho, perguntando se eu realmente queria me envolver com aquilo e coisas assim. No fim, o projeto foi aprovado. Eu tinha co-produção espanhola e francesa, um elenco já contratado, tudo parecia estar certo. Mas então, alguns dias antes do começo das filmagens, eu recebi uma notificação oficial dizendo que o filme estava proibido. Furioso, resolvi fazer outro filme imediatamente, um que não incomodasse tanto aqueles filhos da puta!".

Em busca de ideias para o tal novo filme, o diretor e os dois produtores franceses que bancariam o projeto (Marius e Daniel Lesoeur, da Eurociné) acabaram num cinema de Paris, em plena sessão de "Noivas do Vampiro" (1960), de Terence Fisher - um horror inglês produzido pela Hammer.


Durante a sessão, Franco teve um estalo: disfarçado num contexto de horror e fantasia, o filme inglês contava a história de pessoas comuns "oprimidas" por nobres em posição de privilégio (e vampiros, claro, mas isso não vem ao caso)."E os censores não poderiam dizer nada porque não havia política envolvida", lembrou, na mesma entrevista ao El Franconomicon.

Foi assim que ele resolveu fazer GRITOS EN LA NOCHE, que seria conhecido fora da Espanha como O TERRÍVEL DR. ORLOFF -"L'Horrible Dr. Orlof"na França e "The Awful Dr. Orloff" nos EUA, embora existam títulos alternativos bizarros como "The Demon Doctor" (na Inglaterra) e "Il Diabolico Dr. Sattana"(na Itália)!

(Talvez Jess não soubesse, talvez sim, mas o livro de B. Traven que ele pretendia filmar já tinha sido adaptado para o cinema em 1954, numa produção mexicana dirigida por Alfredo B. Crevenna e Emilio Fernández, que foi lançada no Brasil como "A Revolta dos Torturados".)


Como o projeto anterior que foi proibido estava em pré-produção, com os atores e equipe técnica já contratados, Franco e os produtores resolveram reaproveitá-los em O TERRÍVEL DR. ORLOFF, o que pode ajudar a explicar a sofisticação deste primeiro filme de horror do diretor, que seria a pedra fundamental de praticamente tudo que ele faria depois.

O próprio Jess escreveu o roteiro; mas, para dar um pouquinho mais de "sofisticação"à produção, usou pela primeira vez seu pseudônimo "David Khune", ao colocar um crédito falso no início informando que o filme é baseado num livro inexistente deste autor inexistente. Por ironia, alguns críticos da época, querendo posar de entendidos, escreveram em suas resenhas que o filme era "bastante fiel" ao livro de Khune! Como sempre, o peixe morre pela boca...


A cena inicial de O TERRÍVEL DR. ORLOFF já é puro Jess Franco: na (fictícia) cidadezinha francesa de Hartog do começo do século 20 (o ano é 1912, segundo algumas fontes), uma mulher embriagada cambaleia até sua casa numa noite escura, belissimamente fotografada em preto-e-branco, e ao som de uma trilha inspirada em jazz, uma das grandes paixões do diretor (aqui creditado com o nome americanizado de "Jess Frank").

Chegando ao seu quarto, ainda atrapalhada pelo torpor alcoólico, a garota se prepara para dormir; mas, quando abre a porta do guarda-roupa, se depara com um homem de olhos bizarros, que imediatamente salta de lá de dentro e a ataca. O homem é Morpho (Ricardo Valle), um assassino cego que está sendo controlado pelo terrível Dr. Orloff do título (Howard Vernon) para conseguir jovens cobaias para as suas experiências!


Orloff, que é uma mistura de médico e cientista louco, frequenta cabarés e inferninhos da cidade para escolher suas vítimas (selecionadas pela maciez da sua pele), seduzindo-as com falsas promessas românticas. Quando as moçoilas estão fisgadas, Morpho entra em ação e faz o serviço sujo.

Tudo porque uma experiência do passado conduzida pelo médico/cientista saiu errado e acabou desfigurando o rosto da sua própria filha, Melissa. A partir de então, o único objetivo de vida do amargurado Dr. Orloff é reconstituir o rosto da garota, através de enxertos de pele que retira - adivinhe? - das pobres garotas de vida fácil que seduz e mata!


Os misteriosos desaparecimentos em Hartog são investigados pelo Inspetor Tanner (Conrado San Martín), mas ele não tem muitas pistas além de descrições vagas tanto de Morpho quanto do Dr. Orloff. Até porque a maior parte da cidade não está dando a mínima para o desaparecimento daquelas garotas de "moral discutível" (no pouco de crítica social que Franco conseguiu incluir na história sem incomodar os censores).

O policial é noivo de Wanda (Diana Lorys), uma bailarina que está preocupada com o fato de as investigações do amado não chegarem a lugar nenhum. Ela resolve ajudá-lo, sem que ele saiba, disfarçando-se de dançarina de cabaré para tentar atrair o Dr. Orloff a uma armadilha. O problema é que a moça é muito parecida com Melissa (a mesma atriz interpreta as duas personagens), colocando-a no topo da lista de futuras vítimas do vilão.


O TERRÍVEL DR. ORLOFF confirma não apenas o talento de Jess Franco como diretor (para o horror dos seus críticos), mas também seu enorme conhecimento cinematográfico e de cultura popular, já que o filme é um verdadeiro caldeirão das referências mais diversas: dos clássicos de horror da Universal ao Expressionismo Alemão; dos thrillers de mistério de John Brahm aos horrores baratos de Roger Corman; das "pulp fictions" de Edgar Wallace às histórias em quadrinhos.

Uma das influências mais óbvias é o clássico francês "Olhos Sem Rosto" ("Les Yeux Sans Visage", 1960), de Georges Franju, que também tem um médico/cientista louco arrancando rostos de belas vítimas para tentar reconstruir a face da filha deformada.

Mas não pára por aí: o médico que controla um assassino cego para cometer crimes remete tanto ao livro "The Dark Eyes of London", de Edgar Wallace, quanto ao clássico alemão "O Gabinete do Dr. Caligari" (1920), de Robert Wiene - Morpho inclusive lembra um pouco Cesare, o sonâmbulo controlado pelo Dr. Caligari.


Logo, o primeiro filme de horror de Franco também pode ser visto como um grande catálogo de imagens e situações clássicas do gênero, com velhos castelos e suas câmaras de tortura, onde garotas seminuas enfrentam horrores na tênue linha entre o que os censores da época permitiam ou não mostrar; cemitérios, covas abertas e caixões; belas moças sendo perseguidas por maníacos, e por aí vai.

Não falta nem a icônica imagem do "monstro" (Morpho) carregando nos braços o corpo desfalecido de uma de suas vítimas, ou o laboratório/sala de cirurgia repleto de reluzentes instrumentos cortantes - elementos que, sem demora, se tornariam lugar comum do gênero.


Quando escrevi que O TERRÍVEL DR. ORLOFF seria a pedra fundamental de tudo que Jess Franco faria depois, eu não estava exagerando: as bases sobre as quais o diretor construiria seus filmes posteriores já podem ser percebidas aqui, especialmente na maneira como ele junta horror e sensualidade, sexo e morte, beleza e repulsa.

A personagem principal é uma mulher forte e decidida (a bailarina Wanda acaba encontrando o Dr. Orloff, e não seu noivo investigador que está completamente perdido e não consegue ver as pistas debaixo do seu nariz); o vilão, um sádico e pervertido que ataca belas mulheres. Os demais personagens são garotas de má reputação, bêbados e boêmios, sendo que o representante da lei (o Inspetor Tanner) é a figura mais desinteressante do filme.


Franco revisitou O TERRÍVEL DR. ORLOFF várias vezes, seja em pseudo-continuações/refilmagens (como "El Secreto del Dr. Orloff, "The Sinister Eyes of Dr. Orloff" e "El Siniestro doctor Orloff"), seja reaproveitando o mesmo argumento - notoriamente em "Jack The Ripper" e "Sem Face", sendo que este último conta outra história de médico louco roubando rostos alheios, dessa vez com a violência quintuplicada.

Porém o caso mais curioso é "Revenge in the House of Usher" (1987): quando os produtores não gostaram da versão original de Franco (lançada em 1983), forçaram o diretor a usar cenas de O TERRÍVEL DR. ORLOFF como se fossem flashbacks do passado de Usher, já que o personagem também é interpretado por um envelhecido Howard Vernon! Picaretagem nível máximo!


Enfim, o Dr. Orloff transcendeu os limites deste seu filme de estreia, aparecendo inclusive em produções de outros diretores, como "El Enigma del Ataúd" (1967), de Santos Alcocer, e "La Vie Amoureuse de L'Homme Invisible / The Invisible Dead" (1970), de Pierre Chevalier, sempre interpretado por Howard Vernon.

Não é difícil de entender o porquê do sucesso: o Dr. Orloff é uma daquelas figuras macabras criadas sob medida para virar ícones do horror, embora ainda seja mais popular na Europa do que no restante do mundo, e nunca tenha atingido a mesma popularidade de outros "doutores" do gênero - tipo Caligari ou Phibes.

O sobrenome sonoro e marcante tem diferentes origens, dependendo de quem conta a história: há quem sustente que é uma corruptela do sobrenome do mito Boris Karloff; outros dizem que é uma homenagem ao Dr. Orloff interpretado por Bela Lugosi em "O Monstro Humano" (1939), filme inspirado em - ahá! - no livro "The Dark Eyes of London", de Edgar Wallace!


Howard Vernon, um ator que infelizmente nunca teve o devido reconhecimento e fez parte da trupe de Jess Franco até o final da vida, brilha como o desequilibrado médico/cientista que realmente acredita que não está fazendo nada de errado ao matar jovens mulheres "de vida fácil" para tentar dar um novo rosto à sua filha - e Vernon representa esse misto de loucura e maldade com certo charme e lucidez.

A apresentação do vilão é simbólica, com Vernon seduzindo uma nova vítima num camarote escuro, ela banhada por um facho de luz, ele encoberto pela escuridão, mas com seus olhos sinistros brilhando como os de um predador analisando sua presa!


Já Morpho, o assassino cego que o Dr. Orloff usa para cometer os crimes em seu lugar, foge um pouco do estereótipo do "criado demente" dos filmes da época, e é apresentado como uma figura quase trágica - apesar da maquiagem tosca dos seus olhos "vazados", cujo propósito até hoje eu não consegui entender, provocar algumas risadas involuntárias.

O fato de ele não enxergar rende algumas cenas bem tensas, quando Morpho localiza suas vítimas pela sua respiração ofegante. No restante do tempo, o Dr. Orloff guia seu assecla pelo som, batendo sua bengala no chão para que ele siga os ruídos.


Os ataques de Morpho às pobres vítimas são representados como um misto de vampiro (ele inclusive usa uma capa preta e, à primeira vista, parece morder o pescoço das moças) e maníaco sexual (numa cena cortada na edição espanhola do filme, Morpho arranca o vestido de uma garota em fuga e aperta os seus seios desnudos!).

Porém, por baixo do monstro se esconde um homem em busca da humanidade, que demonstra afeição primeiro com Arne (Perla Cristal), a criada de Orloff, e depois com a própria Wanda, quando ela é aprisionada pelo cientista.

Assim como aconteceu com o Dr. Orloff, capangas dementes chamados Morpho começariam a aparecer em diversos outros filmes de Franco, de "Vampyros Lesbos" a "Dracula Contra Frankenstein", assim como criaturas com olhos deformados (lembra do "monstro canibal" com bolinhas de pingue-pongue no lugar dos olhos de "Manhunter - O Sequestro"?).


Considerando que O TERRÍVEL DR. ORLOFFé apenas o quinto filme de Jess Franco, e o seu primeiro de horror, o jovem espanhol apresenta incrível domínio da narrativa e das fórmulas do gênero, tanto que brinca com as expectativas do espectador e o surpreende o tempo inteiro.

A história começa com uma impactante cena de horror (a descoberta de Morpho dentro do armário e seu ataque à primeira vítima devem ter provocado muitos sustos nas audiências da época), e depois vira uma tradicional história de mistério e investigação. Porém, quando o espectador já se sente confortável com aquela narrativa detetivesca que lhe é bem familiar, Franco volta a assombrá-lo com mais uma sequência de choques e momentos de puro horror totalmente originais, principalmente o ato final no castelo do Dr. Orloff.


O TERRÍVEL DR. ORLOFF também e pode e deve ser usado como "calaboca" instantâneo naqueles cinéfilos que rechaçam tudo que tem o nome "Jess Franco" por conhecerem apenas o pior da filmografia do diretor espanhol.

Isso porque o visual dos filmes desta fase clássica de Jess, fotografados em preto-e-branco pelo espanhol Godofredo Pacheco, é simplesmente fantástico (veja alguns exemplos nas imagens abaixo). Melhores, inclusive, que o de muitas produções "classe A" da mesma época.


Volta-e meia vaza alguma barbeiragem típica de um diretor que fazia tudo na corrida e muitas vezes sem repetir takes (como a sombra da câmera em destaque sobre os atores no momento em que o Dr. Orloff entra numa carruagem com uma das primeiras vítimas). Mas ninguém pode negar o capricho da fotografia e dos enquadramentos.

Além de apresentar ruas escuras com neblina e/ou chuva, calabouços iluminados por velas, cemitérios à noite e cabarés tomados pela fumaça de cigarros, Franco e Pacheco criam alguns belíssimos momentos de puro horror gótico, como quando Orloff e Morpho carregam o caixão com uma vítima desacordada em seu interior a caminho do castelo do vilão (abaixo). Mostre essas imagens para algum amigo cinéfilo xaropão, para ver se ele vai adivinhar de quem é o filme (aposto que "Jess Franco"é o último nome que ele vai chutar).


Um subterfúgio que se tornaria tradicional na obra do diretor é o fato de ele ter fillmado duas versões diferentes de O TERRÍVEL DR. ORLOFF, com mais ou menos putaria, temendo a censura em seu país. Consta que até a ambientação da trama na França foi para escapar da pentelhação dos censores, que talvez não gostassem de uma história de horror passada na Espanha - este é considerado o primeiro filme de terror espanhol de todos os tempos.

Felizmente, a versão internacional - produzida originalmente para o mercado francês, e com créditos e diálogos neste idioma - é a mais conhecida. Ela tem 10 minutos a menos que a edição espanhola, porque foram suprimidos vários trechos da parte "investigativa" da trama, dando mais ênfase ao horror e à ação (a relação completa do que foi cortado, com fotos, pode ser vista aqui). Em compensação, a versão internacional tem mulher pelada, ao contrário daquela mais longa exibida na Espanha.


As cenas alternativas mostram o já citado momento em que Morpho apalpa os seios desnudos de Wanda durante uma perseguição (foi usada uma dublê de corpo, ou de peitos, já que a atriz Diana Lorys recusou-se a aparecer pelada), e uma sequência curiosa em que o Dr. Orloff opera uma das vítimas (Mara Lasso), cortando-a com o bisturi entre os seios desnudos (abaixo).

Se chamo esta sequência de "curiosa", é porque até então o vilão usava apenas a pele do rosto das suas vítimas - ou seja, ele está obviamente cortando no lugar errado! Mas é lógico que a inclusão de tal momento de nudez gratuita demonstra que Franco conhecia o público melhor do que muitos outros diretores de horror da época. Em mais alguns anos, todo filme de terror barato seria praticamente obrigado a mostrar cenas de nudez parecidas e tão gratuitas quanto esta.


Enquanto o resto do mundo via a versão "sensual" de O TERRÍVEL DR. ORLOFF, na Espanha o público tinha um filme um pouquinho mais longo, que mostrava mais momentos da investigação do Inspetor Tanner - o que acaba se revelando redundante, já que é Wanda quem resolve sozinha o mistério!

E a polêmica cena da garota nua na mesa de operações não existe na versão espanhola, onde o Dr. Orloff corta a pele da vítima "no lugar certo" - ou seja, no rosto. Toda a cena é diferente, inclusive nos ângulos e movimentos de câmera: começa com o vilão anestesiando a vítima, e passa para um belo travelling que segue o reluzente bisturi do vilão até o rosto da vítima (abaixo).

Curiosamente, a conclusão da versão espanhola é um pouquinho mais longa e diferente: mostra o Inspetor Tanner encontrando Jeannot (Faustino Cornejo), um bêbado que lhe ajudou durante a investigação, e oferecendo-lhe um trabalho na polícia - que, obviamente, o esperto boêmio recusa!


O TERRÍVEL DR. ORLOFF foi um grande sucesso de público na época do seu lançamento, além de a primeira obra do diretor a ser lançada fora da Europa. Inclusive nos Estados Unidos, onde chegou apenas em 1964 e foi exibida num programa duplo (prática comum com filmes B na época) com a produção italiana "The Horrible Dr. Hichcock" (1962), de Riccardo Freda. Inclusive a grafia "Orloff", com dois Fs no final, começou nos EUA e se popularizou - originalmente, era "Orlof".

A crítica não foi tão generosa e condenou alguns dos excessos de Franco, que foram considerados "sadismo gratuito" do outro lado do oceano. Uma crítica publicada no New York Times na época da estreia norte-americana, naquele programa duplo com o filme de Freda, é hilária:"Finalmente os adjetivos usados nos títulos não são apenas descritivos, mas também apropriados"(se referindo às expressões "Terrível" e "Horrível" no nome dos filmes).


Mas Jess Franco não pôde se queixar, já que o sucesso de O TERRÍVEL DR. ORLOFF carimbou seu passaporte para novos voos. "Foi um sucesso incrível", lembrou o diretor, em entrevista ao site El Franconomicon. "A partir daquele momento, só me chamavam para fazer filmes de terror. É por isso que eu digo que não terem me deixado filmar '[La Rebelión de] Los Colgados' acabou determinando todo o resto da minha carreira".

Logo depois deste, Franco engatou uma sequência de três filmes de horror feitos praticamente um após o outro (uma prática que também se tornaria recorrente na sua filmografia), entre 1962 e 1965. A análise destes filmes comprova que Jess sabia exatamente o que estava fazendo, e que seu primeiro trabalho no gênero não foi apenas sorte de principiante: "O Sádico Barão Von Klaus" (1962) é fraquinho, mas atualmente não circula em versão completa; "El Secreto del Doctor Orloff" (1964) revisita as teorias do seu personagem mais famoso, e o fantástico "Miss Muerte" (1965) é outra evidência de um grande talento em formação.


Embora a fase mais lembrada do diretor seja aquela que mistura horror com surrealismo e erotismo - iniciada com "Necronomicon / Succubus", no final dos anos 1960 -, é sempre um prazer conhecer as origens de Jess e estes horrores classudos da sua fase clássica, que ficam muito acima da média do que se fazia no gênero naquele período, e podem até ser considerados visionários em diversos elementos.

E isso só não vê quem não quer - ou seja, aqueles que conhecem e julgam Jess Franco apenas por dois ou três filmes da sua pior fase, e acham que o seu nome é sinônimo de desleixo e picaretagem. Felizmente, O TERRÍVEL DR. ORLOFF continua por aí, eterno, para fazer muita gente morder a língua!

Por isso, mais uma vez: obrigado, senhores censores espanhóis! Se não fosse por vocês, talvez Jess Franco não tivesse se transformado neste diretor legal e sem vergonha na cara que fez experimentos em todos os gêneros! Pela primeira vez na história, a censura serviu para alguma coisa, afinal...


PS 1:
Uma jovem Marisa Paredes aparece em pequena participação, neste que é um dos seus primeiros créditos como atriz. Exatamente meio século depois, em 2011, já alçada à categoria de atriz-fetiche do diretor espanhol Pedro Almodovar, ela integrou o elenco de "A Pele que Habito", outra história sobre médicos loucos e experiências envolvendo transformações corporais - mas é claro que poucos críticos "profissionais" fizeram essa comparação...

PS 2: Um jovem Jess Franco faz ponta como pianista de cabaré, perto do final do filme (tente reconhecê-lo numa das imagens desta resenha, com o indefectível cigarrinho na boca...).


Trailer de O TERRÍVEL DR. ORLOFF



***********************************************************
Gritos en la Noche / L'Horrible Dr. Orlof
(1961, Espanha/França)

Direção: Jess Franco
Elenco: Howard Vernon, Conrado San Martín,
Diana Lorys, Ricardo Valle, Perla Cristal, Maria

Silva, Mara Lasso e Faustino Cornejo.

O SÁDICO BARÃO VON KLAUS (1962)

$
0
0

No livro "Guida al Cinema Giallo e Thrilling Made in Italy", os autores Antonio Bruschini e Antonio Tentori enumeram os elementos que compõem o legítimo "giallo" (termo usado para definir aqueles ultra-estilizados filmes de mistério feitos na Terra da Bota): um assassino com luvas negras à solta matando belas garotas de forma violenta; o elemento whodunit?, ou seja, a investigação da identidade do matador, e geralmente por uma pessoa "comum" (não um detetive ou policial); o vilão movido por algum distúrbio psicológico; trabalho de câmera e trilha sonora mais artísticos e exagerados e menos realistas; e, finalmente, ter sido produzido na Itália, é claro!

Assim, Bruschini e Tentori confirmam a opinião praticamente unânime de que "La Ragazza che Sapeva Troppo / The Girl Who Knew To Much" (1963), de Mario Bava, seria o primeiro giallo oficial. Porém, se não fosse por uma das atribuições desta lista dos autores (a de o filme ter sido obrigatoriamente produzido na Itália), um espanhol chamado Jess Franco seria o verdadeiro pioneiro do giallo, graças ao seu filme O SÁDICO BARÃO VON KLAUS!


O SÁDICO BARÃO VON KLAUS foi lançado em 1962, alguns meses antes do filme de Bava chegar aos cinemas de Roma (o que aconteceria apenas em 10 de fevereiro de 1963). Mas já traz todos esses elementos que aparecem em "La Ragazza che Sapeva Troppo", além de outros que só veríamos em filmes posteriores do próprio Mario Bava - como "The Whip and the Body" (1963) e "Blood and Black Lace / Sei Donne per L'Assassino" (1964)! É mole?

Originalmente intitulado "La Mano de un Hombre Muerto", este segundo filme de horror de Franco (novamente assinando como "Jess Frank") é uma óbvia tentativa de capitalizar em cima do sucesso do anterior "O Terrível Dr. Orloff". Inclusive o título internacional, "Le Sadique Baron Von Klaus / The Sadistic Baron Von Klaus", parece ter sido escolhido para não deixar dúvidas de que esta é uma obra do mesmo responsável por "Dr. Orloff".


A exemplo do seu terror anterior, o próprio Jess assinou o roteiro de O SÁDICO BARÃO VON KLAUS, e novamente usou o pseudônimo "David Khunne" e a brincadeira de que o filme teria sido baseado num livro de mentirinha deste autor fictício, chamado "La Main d'un Homme Mort" - sim, Franco sempre foi um verdadeiro fanfarrão!

A trama se passa em Holfen, que supostamente fica nos alpes austríacos, mas é apenas mais uma cidadezinha fictícia criada pelo diretor (assim como a Hartog de "O Terrível Dr. Orloff"). Seus moradores vivem aterrorizados por uma velha maldição, rogada 500 anos antes pelo finado Barão Von Klaus, de que a cada noite de lua cheia seu fantasma despertaria para torturar e matar jovens mulheres do vilarejo - da mesma forma que o libertino aristocrata costumava fazer quando vivo.


Com o tempo, a maldição do "sádico Barão Von Klaus" acabou se transformando numa lenda urbana contada sem muita convicção aos estrangeiros que chegam a Holfen. Inclusive o filme começa com dois caçadores, Angel e Theo (respectivamente Serafin Vázquez e Manuel Alexandre), narrando a história para um visitante, o Dr. Kalman (Angel Menéndez), e para o próprio espectador.

Por ironias do destino, no dia seguinte os próprios Angel e Theo acabam encontrando o cadáver mutilado de uma garota, e é claro que atribuem o assassinato à maldição do Barão Von Klaus! Isso atrai até a cidade um investigador da cidade grande, o Inspetor Borowsky (Georges Rollin), e também o jornalista Karl Steiner (Fernando Delgado).


As suspeitas recaem sobre a família Von Klaus, que ainda vive num velho castelo nas margens da cidade. Ali, o descendente direto do barão maldito, Max Von Klaus (Howard Vernon), cuida da irmã moribunda, Elisa (Maria Francés). Logo também aparecem seu jovem sobrinho, Ludwig (Hugo Blanco), acompanhado pela noiva Karine (Paula Martel), já que a velha Elisa está prestes a bater as botas.

Nos próximos dias, o corpo de uma segunda jovem, que estava desaparecida, é encontrado igualmente mutilado no pântano; e Ludwig recebe da tia à beira da morte a chave que abre uma porta fechada há centenas de anos no calabouço do castelo, e que dá acesso à velha câmara de tortura de Barão Von Klaus (afinal, onde já se viu um velho castelo de filme de horror sem câmara de tortura?).

Qual a relação entre esses acontecimentos? E quem será o misterioso assassino de chapéu, roupa preta e luvas negras que passa a dizimar o elenco feminino noite após noite?


Fotografado em belíssimo preto-e-branco pelo mesmo Godofredo Pacheco de "O Terrível Dr. Orloff" (um dos melhores diretores de fotografia com quem Franco trabalhou em sua longa carreira), O SÁDICO BARÃO VON KLAUS se desenvolve como um típico giallo, apesar de - repetindo - não ser uma produção italiana.

Enquanto o misterioso maníaco sexual ataca e mata belas garotas (usando como arma uma bela adaga com centenas de anos de idade), e o representante oficial da lei, que é o Inspetor Borowsky, se perde no emaranhado de pistas falsas e múltiplos suspeitos, caberá ao jornalista Steiner a responsabilidade de descobrir "por fora" a identidade do matador, como é frequente nos thrillers italianos.


Jess desfila um amplo repertório de imagens já conhecidas e referências a filmes e livros de mistério, da silhueta do assassino aparecendo na janela de uma vítima em potencial a ambientações tipo velhos castelos com câmara de tortura (tem até um esqueleto de plástico pendurado na parede!), cemitérios, as ruas desertas do vilarejo à noite e pântanos.

Mas é interessante constatar que, a exemplo de "O Terrível Dr. Orloff", O SÁDICO BARÃO VON KLAUS está numa fase de transição entre o horror gótico/clássico dos velhos filmes da Universal (e suas imitações), que abusavam dos castelos, cemitérios e teias de aranha, e um horror mais moderno, entre o macabro de "Psicose" (1960) e a escatalogia de "Banquete de Sangue" (1963). Afinal, o vilão aqui não é um vampiro, lobisomem e nem um cientista louco, como o Dr. Orloff, e sim um monstro bem humano, porém degenerado, que mata suas vítimas com requintes de crueldade.


Também a exemplo do que fez em "O Terrível Dr. Orloff", o diretor parece disposto a provocar a rígida censura espanhola do período, ao ultrapassar os limites do que era permitido mostrar na telona.

Um ano antes do clássico de Mario Bava "The Whip and the Body" (1963), em que Christopher Lee aparecia chicoteando uma seminua Daliah Lavi, O SÁDICO BARÃO VON KLAUS já tem cena semelhante evocando sexo e sadomasoquismo, mas consideravelmente mais forte, e talvez por isso reservada para o ato final do filme.


Esta cena inclusive é o ponto alto, e foi cortada das cópias exibidas na Espanha por motivos óbvios (que atendem pelo nome de General Francisco Franco). Primeiro, o assassino arrasta uma jovem vítima (interpretada pela argentina Gogó Rojo) para a masmorra do castelo dos Von Klaus, onde aproveita o fato de ela estar desacordada para despi-la. Ela então volta a si, mas o vilão a tranquiliza... praticando sexo oral na moça!!!

É isso aí, você não leu errado: em pleno ano de 1962, num filme de horror e não-pornográfico, é representada uma cena de sexo oral deixando bem pouco para a imaginação do espectador, com direito à jovem atriz com os seios de fora e até um plano fechado da sua expressão de prazer ao atingir o orgasmo! Por muito menos que isso (uma cena de banho que não mostra praticamente nada), "Psicose" criou a maior polêmica apenas dois anos antes!


Terminada a putaria, ao invés de acender um cigarrinho ou virar pro lado e dormir, o vilão é dominado pelos seus impulsos violentos e começa a chicotear sua vítima violentamente. Finalmente, arrasta a desfalecida garota e a acorrenta, ainda seminua, ao teto da masmorra, agora para torturá-la usando um ferro em brasa!

Ainda que o desfecho desta cena (a tortura com a ferramenta incandescente) seja off-camera, vamos lembrar, mais uma vez, em que época O SÁDICO BARÃO VON KLAUS foi filmado: imagine o impacto provocado no público quando aquele filme de mistério chatinho de repente se transforma num show de sadismo (quase) sem censura, com uma garota seminua sendo chupada, chicoteada e torturada durante longos minutos! Transgressor, para dizer o mínimo!


Esta também pode ser considerada uma das primeiras investidas de Jess no terreno das fantasias sadomasoquistas do Marquês de Sade, um autor que reapareceria inúmeras vezes em sua filmografia, principalmente a partir do final da década de 70 - começando com citações em "Necronomicon" e finalmente uma adaptação oficial de obra do autor, "Santuário Mortal", em 1968.

O próprio Barão Von KIaus parece ter sido inspirado no próprio Sade, já que um diário escrito por ele, e encontrado na câmara de torturas pelo seu jovem descendente Ludwig, revela seus devaneios sádico-eróticos que lembram muito a filosofia do Marquês: "Espero que essas memórias sejam usadas pelos meus descendentes como um guia, uma iniciação em um mundo apaixonante de sensações raras e desconhecidas, um mundo sedutor e trágico construído de dor e de sangue, do trágico erotismo de todos os sentidos, que finalmente termina em morte". 


Obviamente, a cena gerou polêmica no lançamento e foi extirpada de várias montagens: a versão lançada na Espanha, por exemplo, não continha nem sexo oral, nem chicoteamento, nem tortura (tudo isso acontecia off-screen). E quando o cadáver da moça torturada era encontrado na masmorra por Steiner, uma camisa cobria os seios nus da atriz, no tipo de take alternativo que Franco acostumou-se a gravar para não ter problemas com os censores.

A versão completa do filme foi considerada perdida até meados dos anos 2000, quando a Image lançou nos Estados Unidos o DVD com uma edição quase completa. Infelizmente, ainda falta uma cena inicial pré-créditos que, segundo relatos de pesquisadores, traz elementos que antecedem tanto o Bava de "Blood and Black Lace" e "Banho de Sangue" (1971) quanto os filmes slasher da década de 1980 ("Sexta-feira 13" e outros).

(Mas, antes que digam que Bava plagiou Franco, é bom lembrar que O SÁDICO BARÃO VON KLAUS só estreou nos cinemas italianos em 1966, com o título "Sinfonia per un Sadico".)



Tal cena pré-créditos, que é considerada um autêntico Santo Graal para os fãs da fase clássica de Jess Franco, mostraria o assassino observando e atacando duas garotas à margem de um lago, numa situação que lembra bastante os slashers pós-"Sexta-feira 13" - até porque, ao contrário do que acontece no restante do filme, desta vez o vilão também aparece mascarado!

Por sinal, estas duas moças são aquelas cujos cadáveres aparecem mais adiante no filme, então o prólogo explica quem são e como foram mortas. Agora é torcer para que esta cena reapareça ainda nesse século...


Sem este prólogo, o que resta em O SÁDICO BARÃO VON KLAUSé um filme de mistério tecnicamente e visualmente competente, mas bem chatinho e enrolado, com mais cenas investigativas do que "horroríficas".

O grande momento é a cena sadomasoquista na masmorra, que só acontece no final, então o restante do tempo é preenchido com looooooongos interrogatórios do Inspetor Borowsky e inúmeras pistas falsas que não fazem a menor diferença, já que a verdadeira identidade do assassino pode ser facilmente adivinhada, até pelo espectador mais distraído, ainda na meia hora inicial do filme.


Dando um desconto para a história fraquinha, o que resta é mais um filme caprichado da fase clássica de Franco, sem os excessos e barbeiragens que ele demonstraria ao longo da sua carreira, e com momentos de deixar qualquer cinéfilo de bom gosto com o queixo caído - como a cena em que Steiner persegue o assassino em fuga por becos escuros cheios de sombras até um macabro cemitério fotografado à noite.

O diretor faz ótimo uso da fotografia em Cinemascope, compondo quadros cheios de elementos nas laterais, incluindo sombras ameaçadoras que crescem como uma ameaça invisível sobre os personagens. O preto-e-branco também cria um clima onírico, já que as cenas ficam incrivelmente brancas à luz do dia (por causa da neve que recobre a cidade) e opressivamente escuras durante a noite.


Mesmo assim, ele não deixa de cometer algumas das suas tradicionais barbeiragens, rendendo momentos involuntariamente engraçados, como aquele em que um personagem caminha durante uma tempestade de neve no plano médio, mas alguns segundos antes e alguns segundos depois, quando a edição corta para o plano geral, não aparece um único floquinho de neve caindo do céu! A nevasca provavelmente começou e terminou enquanto Franco fazia os planos mais fechados do ator, e ele achou bonito e resolveu usar de qualquer jeito, mesmo não havendo tempestade de neve nos outros takes da mesma cena (abaixo)!!!


Entre os pontos fracos, além do ritmo titubeante, está a principal personagem feminina, interpretada por Paula Martel, que é bem fraquinha e não chega aos pés de Wanda em "O Terrível Dr. Orloff". Até porque não foge do estereótipo de mocinha frágil em perigo, sempre gritando ou parecendo mortalmente aterrorizada (e a atriz exagera um pouco nas caras e bocas).

Como uma espécie de precursora das futuras garotas imbecis da série "Sexta-feira 13", a "heroína" também protagoniza um momento em que foge do assassino pela floresta e fica tropeçando e caindo o tempo inteiro, para dar chance de o vilão conseguir se aproximar dela! E com quilômetros de floresta para fugir, ela prefere "se esconder" atrás de uma árvore e virar alvo fácil para o assassino, comprovando que, pelos próximos 20 ou 30 anos, personagens femininas em filmes slasher não aprenderam absolutamente nada!


Geralmente um grande ator nos filmes do amigo Jess, até Howard Vernon aparece apagado aqui: interpretando o grande suspeito dos crimes, Max Von Klaus, Vernon passa o tempo todo agindo de maneira suspeita e fazendo cara de louco, esquecendo que sua interpretação como Dr. Orloff era eficiente justamente porque não caía nesse tipo de caricatura e estereótipo.

(SPOILERS) Felizmente, Franco não foi estúpido o suficiente de colocar Howard Vernon pela segunda vez como vilão, e é claro que a presença do ator aqui é apenas para tentar engambelar o espectador e afastar suas suspeitas do verdadeiro assassino - embora, como eu já tenha dito, é muito fácil identificar a identidade do verdadeiro autor dos crimes. (FIM DOS SPOILERS)


Depois de dois filmes de espionagem ("La Morte Silba un Blues" e "Rififi en la Ciudad", respectivamente em 1962 e 1963) e de um "quase western" ("El Llanero", de 1963), Jess voltaria ao território do horror, e do seu filme mais famoso, em "El Secreto del Doctor Orloff", de 1964. Mas ao invés de cair na armadilha de ressuscitar o personagem, Franco usa seu nome apenas no título, pois o filme enfoca as teorias do Dr. Orloff, e não o próprio em carne e osso.

Por fim, antes de dar um tempo no gênero para dedicar-se a outros projetos mais popularescos, Jess assinou o fantástico "Miss Muerte" (1965), conhecido nos EUA como "The Diabolical Dr. Z", que é praticamente um apanhado de tudo o que ele fez no campo do horror/suspense desde 1961 e "O Terrível Dr. Orloff", fechando com chave de ouro a chamada "fase clássica" do diretor.


E mesmo que este O SÁDICO BARÃO VON KLAUS seja o mais fraquinho da leva, pode funcionar para quem curte o ritmo mais lento - e focado no visual e no clima - dos filmes de horror de antigamente.

Também é interessante para fãs do cinema de horror italiano, que podem constatar como Franco foi visionário ao antever diversas ideias (narrativas e visuais) que o cinema giallo abordaria ao longo das décadas de 60 e 70.


No fim, Jess Franco pode até não ter inventado o giallo; este mérito é do mestre Mario Bava, e com muita justiça. Mesmo assim, o espanhol comprovava desde esses seus primeiros filmes que era um cineasta bem à frente do seu tempo. Já está valendo.



*******************************************************
La Mano de un Hombre Muerto /
Le Sadique Baron Von Klaus
(Espanha, 1962)

Direção: Jess Franco
Elenco: Hugo Blanco, Paula Martel, Fernando
Delgado, Howard Vernon, Gogó Rojo, Georges
Rollin, Ana Castor e Turla Nelson.

MISS MUERTE (1965)

$
0
0

Como vimos na resenha de "O Terrível Dr. Orloff", Jess Franco se tornou um diretor de filmes de horror por puro acidente, depois que o projeto "socialmente engajado" que ele ia começar a rodar foi proibido pelos censores espanhóis. Mesmo assim, ele saiu-se muito bem em sua estreia no gênero e acabou fazendo quatro filmes de terror entre 1961 (o ano de "Dr. Orloff") e 1965, o ano de uma pequena obra-prima chamada MISS MUERTE - o grande filme da fase clássica de Franco, aquela que começa com sua estreia no cinema, em 1959, e termina com "Necronomicon" em 1967.

Se fizermos uma analogia entre os três terrores anteriores de Jess ("O Terrível Dr. Orloff", "O Sádico Barão Von Klaus" e "El Secreto del Dr. Orloff") e os primeiros filmes de James Bond - já que as aventuras de 007 estavam sendo produzidas no mesmo período -, MISS MUERTE seria uma espécie de "007 Contra Goldfinger". Enquanto os primeiros apresentaram o repertório de personagens, vilões e truques do realizador, este novo, o "Goldfinger" do terror clássico de Franco, tornou tudo mais estilizado e divertido.


Por coincidência, como já havia acontecido com "O Terrível Dr. Oloff", MISS MUERTE foi um projeto criado no improviso por causa dos censores espanhóis - e por isso, mais uma vez, me vejo obrigado a agradecer à Censura!

À época, Franco estava prestes a filmar um roteiro chamado "Al Otro Lado del Espejo", escrito em parceria com um francês chamado Jean-Claude Carrière (que havia roteirizado "O Diário de uma Camareira", de Luis Buñuel, em 1964, e assinaria vários outros filmes dele nos anos seguintes). Esta co-produção francesa contaria a história de uma garota que, traumatizada pelo suicídio do pai, começa a matar todos os homens com quem se relaciona, motivada pelo fantasma do falecido.


O problema é que os cisudos censores espanhóis não gostaram da ideia de uma protagonista seduzindo e matando diversos homens, e sugeriram uma série de cortes e adaptações para liberar o projeto. Como essas mudanças acabariam com o filme, Franco preferiu adiar "Al Outro Lado del Espejo" (que acabaria filmando do seu jeito em 1973) para fazer outra coisa. Assim, MISS MUERTE, como "O Terrível Dr. Orloff", nasceu de uma frustração do diretor.

"MISS MUERTE não deveria existir", comentou Jess, numa entrevista de 1991."A Censura estava pedindo mudanças nesse outro roteiro. Eles não me proibiram de filmá-lo, mas impuseram uma série de modificações. Aí eu me neguei a fazer o que queriam e disse a eles: 'Ao invés disso, vou fazer outro filme de horror. Tipo esses que vocês acham estúpidos, esses que vocês ficam rindo porque mostram castelos misteriosos e gatos pretos. Mas já que não me deixam mostrar nem um peito, então vou fazer outro desses!".


Mantendo a parceria com Jean-Claude Carrière (com quem depois escreveria também a aventura de espionagem "Cartes sur Table", de 1966), Jess resolveu fazer de MISS MUERTE uma espécie de prolongamento e/ou continuação dos temas, personagens e ideias que já tinha enfocado nos três filmes de horror anteriores.

Porque mesmo que essas suas outras obras tivessem diversas ideias à frente do seu tempo, elas ainda estavam muito presas a um conceito de passado, principalmente aqueles filmes de horror gótico que Franco cresceu assistindo. MISS MUERTE, por outro lado, moderniza esses elementos e inclui bem-vindos toques de ficção científica, surrealismo e arte moderna na mistura. O resultado é algo único.


A história começa em Holfen, uma cidadezinha dos alpes austríacos, onde o perigoso criminoso Franz Bergen (Guy Mairesse), conhecido como "O Estrangulador de Woodside", escapa de um presídio de segurança máxima na véspera de sua execução.

Numa das primeiras boas surpresas do roteiro, o assassino fugitivo ganha grande destaque nesta cena inicial, com ênfase na sua periculosidade, e tudo leva a crer que será o grande vilão da história. Mas ele logo deixa de ser uma ameaça para tornar-se a primeira vítima, antes mesmo dos créditos iniciais aparecerem! Tudo porque, em meio à fuga, Bergen busca refúgio no laboratório do misterioso Dr. Zimmer (Antonio Jiménez Escribano, que está em vários dos primeiros filmes de Franco).


Embora não seja exatamente malvado (no fundo é bem-intencionado, como todo cientista de filme de horror), Zimmer resolve usar o assassino como cobaia de uma experiência que pretende neutralizar o lado "malvado" da personalidade humana, através de agulhas enfiadas no cérebro (!!!) que emitem ondas de rádio ou coisa que o valha, e que são chamadas de "Raios-Z" pelo cientista.

A experiência funciona e o bandidão fica doce como um cordeirinho, embora transformado num escravo sem vontade própria - praticamente um autômato, que obedece cegamente as ordens do cientista que o "criou".


Feliz com os resultados, o Dr. Zimmer resolve apresentar seus estudos num Congresso de Neurologia que, por coincidência, está sendo realizado na mesma cidade, reunindo a nata dos médicos e pesquisadores desta área.

Só que seus colegas não recebem tais experiências com o mesmo entusiasmo: Zimmer é publicamente humilhado, chamado de charlatão e proibido de continuar as pesquisas. Com o choque, o cientista sofre um infarto fulminante e morre diante da junta médica; antes, porém, pede para que sua filha Irma (a argentina Mabel Karr), que também é médica, leve adiante as suas experiências "na surdina".


A partir daí, desenvolve-se uma história de vingança fora do comum: Irma decide simular a própria morte num acidente de carro (usando o cadáver de uma caroneira que ela mesma matou nos limites da cidade), e depois muda-se para o casarão da família em Hartog, na França, levando consigo o fiel escravo Bergen e a assistente Barbara (Lucía Prado), que foi igualmente lobotomizada pelos Raios-Z.

Na nova cidade, com um novo laboratório montado e pronto para o trabalho, Irma prepara sua vingança contra os três médicos que humilharam e provocaram a morte do seu pai: os doutores Vicas (Howard Vernon), Moroni (Marcelo Arroita-Jáuregui) e Kallman (Cris Huerta). Para chegar até eles e assassiná-los sem levantar suspeitas, a cientista utiliza uma sensual dançarina chamada Nadia (Estella Blain), que realiza um famoso número de dança chamado "Miss Morte" (daí o nome original do filme).


Nadia/Miss Muerte é atraída com a promessa de virar estrela em Hollywood e aprisionada por Irma. Depois de submetida ao mesmo processo com os Raios-Z, sua vontade é anulada e ela passa a obedecer as ordens da vilã - tornando-se, literalmente, a "Miss Morte" do seu número.

E como a dançarina usa longas unhas pontiagudas, que faziam parte da sua personagem no show, a cientista doida resolve adaptá-las para que se transformem em sua arma de vingança, envenenando-as com curare!


O problema é que a bela Nadia tinha um amante, o Dr. Philippe Fraser (Fernando Montés). Ele também é médico, também estava no Congresso em que o Dr. Zimmer morreu e, vejam só que coincidência, também teve um caso recente com Irma. Quando as duas mulheres de sua vida desaparecem ao mesmo tempo em que seus colegas médicos começam a morrer misteriosamente, Fraser desconfia que esses eventos possam estar conectados.

Ao mesmo tempo, uma dupla de policiais começa a investigar os acontecimentos. Eles são os inspetores Tanner e Green (abaixo), interpretados respectivamente pelo próprio Jess Franco e pelo músico francês Daniel J. White, responsável pela trilha sonora do filme, que se tornaria colaborador fiel do diretor pelas próximas três décadas!

Franco não só tem um papel de destaque como ainda funciona como alívio còmico, já que seu investigador passa o filme inteiro meio sonâmbulo: ele não consegue dormir porque sua esposa acabou de dar à luz a trigêmeos!


É curioso que os censores espanhóis que encrencaram com "Al Otro Lado del Espejo" tenham deixado MISS MUERTE passar batido, já que os temas dos filmes até que são bem parecidos. Se no roteiro recusado uma garota assombrada pelo suicídio do pai começa a seduzir e matar os homens com quem se relaciona, aqui temos Irma, a filha cientista assombrada pela morte do pai, usando uma dançarina sensual como arma de vingança para seduzir e matar os homens que julga responsáveis pelo ocorrido. Franco e Carrière mudaram as motivações, mas mantiveram a essência do roteiro recusado - e ninguém percebeu!


Mais do que uma simples história de vingança, MISS MUERTEé um incrível coquetel de referências à cultura pop, em que cada frame exala um clima de filmes B, histórias em quadrinhos ou livros de ficção barata ("pulp fiction"). Apesar de original, o roteiro não esconde sua inspiração no livro "A Noiva Estava de Preto", de Cornell Woolrich, sobre uma garota que se vinga dos homens que considera responsáveis pela morte do seu noivo.

O mesmo livro ganharia uma adaptação oficial e homônima para o cinema três anos depois (1968), dirigida por François Truffaut, e também foi uma das inspirações declaradas de Quentin Tarantino ao escrever "Kill Bill".


Cinéfilos de carteirinha, Jess e Carrière se divertiram muito ao encher o filme de citações e brincadeiras que podem até passar batidas na primeira assistida, como quando um certo "Bresson" telefona para o Dr. Zimmer para contar-lhe sobre a fuga de Bergen da cadeia. O telefonema é atendido por Irma, e, ao passar a mensagem para o pai, ela diz: "Un condamné à mort s'est échappé" (Um condenado à morte escapou). Trata-se de uma referência ao filme "Um Condenado à Morte Escapou" (no original, justamente "Un Condamné à Mort s'est Échappé"), que foi dirigido em 1956 por, adivinhem?, Robert Bresson!


MISS MUERTE também está repleto de citações aos três filmes de terror anteriores de Jess, naquele tipo de auto-referência que a molecada de hoje acha que foi o Tarantino quem inventou. Quando apresenta suas teorias no Congresso de Neurologia, por exemplo, o Dr. Zimmer diz que se inspirou no trabalho do desacreditado Dr. Orloff!

Estas mesmas teorias já haviam sido usadas por outro cientista, o Dr. Fisherman, em "El Secreto del Dr. Orloff". E Howard Vernon, que interpretou o Dr. Orloff em pessoa no filme original de 1961, reaparece aqui no papel de um outro médico - embora dessa vez, ironicamente, como vítima!


As experiências de controle do corpo e da mente para gerar "escravos zumbis" que seguem as ordens de cientistas malvados também já foram vistas antes nestes dois mesmos filmes (e voltariam a aparecer em outros posteriores, como "Cartes sur Table"). Já o fato de o assassino Franz Bergen ser transformado em escravo mudo e obediente de Zimmer e sua filha remetem diretamente a Morpho, o capanga do vilão em "O Terrível Dr. Orloff".

Além disso, a trama se passa em Hartog e Holfen, as duas cidades fictícias criadas por Jess para ambientar "O Terrível Dr. Orloff" (Hartog) e "O Sádico Barão Von Klaus" e "El Secreto del Dr. Orloff" (Holfen). E, caso você não tenha reparado, o policial que investiga os crimes em Hartog provavelmente é o mesmo Inspetor Tanner que foi interpretado por Conrado San Martín em "O Terrível Dr. Orloff", só que agora vivido pelo próprio Franco!


Até mesmo os nomes de duas das vítimas da Miss Muerte são reincidentes na obra do diretor: já existiam Kalmans em "Labios Rojos" (1960) e "O Sádico Barão Von Klaus", e Moronis em "Labios Rojos" e "La Morte Silba un Blues" (1962), além de, posteriormente, em vários outros filmes.

Novamente, também, Franco usou a piadinha do"baseado em livro de David Khune" (um dos seus pseudônimos) nos créditos iniciais, mas obviamente tal livro nunca existiu. E o detalhe de o policial interpretado por ele ter trigêmeos é visto como uma referência aos três filmes de horror que ele dirigiu entre 1961 e 1964, e que seriam os seus "filhos".


Embora ainda traga alguns elementos que remetem ao horror das antigas, tipo o velho castelo para onde Irma e sua trupe se mudam, ou o laboratório cheio de tubos de ensaio soltando fumaça, tudo em MISS MUERTEé modernoso e contemporâneo. Principalmente as aparelhagens usadas pelo Dr. Zimmer (depois herdada pela filha), que não passam de uma caricatura do que se imaginava em matéria de "alta tecnologia" na época.

Um belo exemplo é a máquina que imobiliza as cobaias com dois braços mecânicos, semelhantes a uma aranha gigante, ou ao Dr. Octopus dos gibis do Homem-Aranha. O próprio Jess criou o visual da geringonça, inspirado nas pinças dos caranguejos, e os braços mecânicos eram operados manualmente por pessoas que ficavam fora do frame, numa trucagem bem convincente.


MISS MUERTE foi o filme com maior orçamento que Jess dirigiu até então, o que é perceptível na qualidade (e principalmente na quantidade) dos cenários, nos efeitos melhorzinhos e na quantidade de personagens e de figurantes (nas cenas do congresso médico, por exemplo).

Apesar do título original em espanhol ser curto e eficiente, as cópias para o mercado externo foram rebatizadas como "O Diabólico Dr. Z"(ao lado, o belo pôster norte-americano), para seguir o estilo dos títulos estrangeiros dos outros filmes de terror do diretor, que sempre traziam o nome do grande vilão antecedido por um artigo tipo "Terrível", "Sádico" e, agora, "Diabólico".

O problema é que o "Dr. Z" (no caso, o Dr. Zimmer) mal aparece, e a verdadeira razão de ser da trama é exatamente a Miss Muerte (vai entender porque não usaram "A Diabólica Miss Muerte"!).

A trama criada por Franco e Carrière também presta tributo (mais uma vez) ao filme francês "Os Olhos Sem Rosto" (1960), de Georges Franju, que já havia inspirado "O Terrível Dr. Orloff" quatro anos antes. A exemplo do "horror cirúrgico" de Franju, aqui também há todo um repertório de imagens escabrosas que remetem a procedimentos médicos, como bisturis cortando pele (e o respectivo sangue saindo do ferimento) e agulhas sendo enfiadas no crânio e nas costas das vítimas, sem desviar a câmera ou dar um fade-in para poupar o público mais sensível - e ainda não acostumado a esse tipo de cena mais gráfica.


Porém logo fica claro que o foco do filme não é no segmento "cientista louco" prometido pelas cenas iniciais (e pelo título internacional), e sim na sensual vingadora representada por Nadia/Miss Muerte.

Ela é simplesmente uma das melhores personagens femininas já criadas por Jess Franco, e a maneira como o filme a apresenta é digna de figurar entre os grandes momentos da obra do diretor: o número de dança "moderna" envolve um cenário escuro, uma teia de aranha pintada no chão e a garota se oferecendo sensualmente para um manequim antes de "matá-lo" com suas unhas pontiagudas - depois, ela fará o mesmo com suas vítimas humanas!


Um autêntico fetiche ambulante, Nadia usa uma roupa colante da cor da pele, dando a impressão de que está sempre nua sem estar (para o horror dos temíveis censores espanhóis, que não podiam exigir o corte das suas cenas), e com o desenho de uma gigantesca aranha negra que começa na sua cintura (!!!) e se espalha pelo resto do corpo. Enfim, um visual incrível de vilã de história em quadrinhos, e que já nasceu clássico.

Nadia/Miss Muerte é interpretada pela curvelínea Estella Blain, que está fantástica no papel, representando Nadia como uma autêntica gata selvagem. Inclusive há uma cena que simboliza isso perfeitamente, quando Irma usa uma cadeira para "domá-la" como se fosse um animal selvagem no circo. Infelizmente, a carreira de Estella não deslanchou e teve um fim trágico: na virada do ano de 1981, nos primeiros minutos de 1º de janeiro de 1982, ela suicidou-se com um tiro na cabeça em uma praia francesa. Tinha 51 anos de idade.


Anda que inspirado diretamente nos outros filmes de horror do diretor, MISS MUERTE se tornaria uma referência bastante presente no que ele faria depois - e inclusive traz a primeira referência a lesbianismo (ainda que bem leve) de toda a sua filmografia.

Jess filmou uma nova versão da mesma história no posterior (e superior) "Ela Matou em Êxtase" (1970), eliminando os elementos de ficção científica e colocando Soledad Miranda como a viúva que seduz e mata os colegas do seu falecido marido médico, e que ela considera responsáveis pelo seu suicídio (inclusive Howard Vernon reaparece para tomar o troco pela segunda vez!).


Já a figura da dançarina exótica que é forçada a matar por influências externas reapareceria em vários outros filmes de Franco, como "Pesadelos Noturnos" (1970) e "Necronomicon" (1967).

Neste último, o número de dança apresentado por Janyne Reunald até reutiliza a mesma música do número da Miss Muerte aqui, que também inspirou a performance artística de Soledad Miranda com um manequim em "Vampyros Lesbos" (1970)!


Outro aspecto que se tornaria ainda mais forte nos trabalhos seguintes do diretor é o destaque para as mulheres, que aqui ganham todos os holofotes (e inclusive os dois principais créditos). Não só existe a vilã que é uma verdadeira "Dra. Orloff" (Irma, a cientista malvada), mas ainda a personagem-título, que usa o corpo como arma para matar homens bem mais fortes do que ela - numa das grandes representações do dueto sexo e morte, a partir daqui cada vez mais frequente na filmografia de Jess franco.

Todos os personagens masculinos são ou vítimas, ou figuras secundárias e desinteressantes - incluindo Fraser, o namorado de Nadia que é promovido a detetive por causa da burrice da polícia. No belíssimo final aberto, (SPOILERS) ele recebe um carinho da sua amada de unhas envenenadas, mas o filme termina subitamente, deixando a critério do espectador decidir se Miss Muerte realmente estava sendo carinhosa ou se apenas estava se preparando para arranhá-lo, somando mais uma vítima à sua lista de crimes! (FIM DOS SPOILERS)


Entre diversas curiosidades dos bastidores, a pequena participação não-creditada da atriz espanhola Ana Castor, como a caroneira que é morta por Irma no começo do filme, merece ser explicada: originalmente, Ana havia sido contratada justamente para o papel de Irma, a filha do Dr. Zimmer!

Porém, ao ler o roteiro e descobrir que teria que passar boa parte do filme com pesada maquiagem para simular o rosto deformado (porque a personagem sofre queimaduras na face quando simula a própria morte), a extremamente vaidosa atriz recusou o papel. Para se vingar, Franco colocou Mabel Karr no papel de Irma, e não só deu a Ana uma ponta sem crédito como ainda a "matou" violentamente nos 20 primeiros minutos do filme - e, a partir daqui, a carreira da coitada não foi muito mais longe.


A exemplo de "O Sádico Barão Von Klaus" e diversas outras obras do diretor que não circulam em versões completas, MISS MUERTE também tem uma cena hoje considerada perdida: a tortura do Dr. Moroni. Na versão existente, o médico aparece sendo morto (aparentemente) por gás venenoso no banco de trás de um táxi.

Só que a existência de stills e lobby cards (como este aí abaixo) que mostram Moroni amarrado e amordaçado numa cadeira, e com Miss Muerte se aproximando ameaçadoramente com um punhal na mão, levam a crer que a cena da sua morte seja mais longa, e que o médico tenha sido apenas adormecido pelo gás e então conduzido para uma sessão de tortura!

Pode até ser uma mera foto de divulgação, mas o fato de haver uma cena semelhante de tortura em "Ela Matou em Êxtase", a refilmagem disfarçada de MISS MUERTE, é outra evidência de que talvez exista mais uma cena perdida na filmografia de Jess Franco!


Independente de tal cena perdida, MISS MUERTEé, disparado, o grande trabalho da fase clássica de Franco - não apenas lindo visualmente, mas também muito mais sofisticado e moderno que os anteriores. O próprio diretor, que se referia a todos os seus trabalhos desta fase como "velharias", assumiu que é o seu filme preferido do período.

Visto hoje, ele se assume ainda mais como uma grande brincadeira de cinéfilo, uma história que se passa num universo alternativo e absurdo de cinema (ou quadrinhos, ou "pulp fiction"), com femmes fatales que matam usando longas unhas envenenadas, cientistas loucos que usam agulhas para controlar o cérebro humano e policiais bobalhões que não investigam nada.


Colaboram bastante para criar este clima a impecável direção de arte de Antonio Cortés (que já havia trabalhado no igualmente estiloso "O Sádico Barão Von Klaus") e a fotografia em preto-e-branco de Alejandro Ulloa, que só fez este filme com Jess Franco, mas deixou sua marca num dos filmes mais belos do espanhol.

MISS MUERTEé mais um daqueles trabalhos que mesmo os maiores críticos de Franco podem assistir sem medo, pois em nada lembram o que ele faria a partir dos anos 1970 - e, principalmente, das décadas de 80 em diante (sua fase mais "improvisada").

Também pode ser encarado como um "adeus" do diretor ao passado, ao clima antiquado dos seus três filmes de horror anteriores. É como se eles tivessem sido um treino para este aqui, já que tudo em MISS MUERTE parece renovado e melhorado, mais atual, futurista e original (incluindo aquelas ideias velhas que foram recicladas pelos roteiristas e ganharam uma nova roupagem).


Neste aspecto, o tão criticado diretor espanhol foi visionário, já que outros "fazedores de horror" demoraram mais alguns anos para trazer seus monstros para a modernidade.

Tipo a Hammer, que nos anos 70 colocaria Drácula em histórias contemporâneas e modernosas (como "Drácula no Mundo da Minissaia", de 1972), aposentando os velhos castelos e aquelas histórias que se passavam séculos atrás.

Ou mesmo o clássico "O Abominável Dr. Phibes" (1971), de Robert Fuest, em que Vincent Price também se vinga dos médicos que considera responsáveis pela morte da sua esposa, e com a ajuda de uma sensual ajudante chamada Vulnavia.

Jess Franco, mais uma vez, estava pensando à frente do seu tempo...


Trailer de MISS MUERTE



*******************************************************
Miss Muerte / The Diabolical Dr. Z
(Espanha/França, 1965)

Direção: Jess Franco
Elenco: Estella Blain, Mabel Karr, Fernando Montés,
Howard Vernon, Chris Huerta, Guy Mairesse, Lucía
Prado, Marcelo Arroita-Jáuregui e Jess Franco.

JACK THE RIPPER (1976)

$
0
0

Em 1975, Jess Franco estava sem produtor e sem dinheiro, e bem no meio das filmagens de um WIP (aqueles filmes de sacanagem sobre mulheres na cadeia). Desesperado, foi choramingar com o produtor suíço Erwin C. Dietrich, que na época estava financiando (e às vezes até dirigindo) tranqueiras sexploitation como "The Erotic Adventures of Robin Hood" (1969) e "The Three Musketeers and Their Sexual Adventures" (1971).

Dietrich caiu na lábia do espanhol e topou bancar o que faltava de grana para que ele terminasse o tal filme, chamado "Frauengefängnis" (mais conhecido pelo título em inglês "Barbed Wire Dolls"). Ao ver o filme pronto, o coitado ficou horrorizado: Franco tinha filmado da forma mais desleixada possível, com luz natural, câmera no ombro e várias cenas fora de foco, o completo oposto do mínimo de qualidade que o produtor exigia mesmo nas podreiras que financiava. Mais uma vez, o velho Jess venceu-o na lábia, dizendo que aquele era o futuro do cinema: filmes com uma cara mais amadora e realista (ou seja, de certa forma ele já antecipava o Dogma 95!!!).

Porém nada poderia preparar o pobre Dietrich para o capítulo seguinte desta novela: enquanto preparava os contratos de distribuição do tal "Barbed Wire Dolls", ele descobriu que estava chegando aos cinemas uma co-produção italiana chamada "Women Behind Bars", e as imagens e nomes de atrizes no pôster deste filme lhe eram estranhamente familiares.

Acontece que Franco havia rodado também este segundo filme de mulheres na cadeia ao mesmo tempo em que filmava "Barbed Wire Dolls", nos mesmos cenários, com o mesmo elenco e usando o equipamento de Dietrich (ao lado, o pôster dos dois filmes)!

Algo do tipo "take 1 vai para 'Barbed Wire Dolls', take 2 vai para 'Women Behind Bars'", porque ele tinha pegado dinheiro de produtores italianos para um outro projeto que não saiu do papel, mas continuava devendo um filme para eles! Dá pra acreditar?

Esta introdução foi apenas para explicar porque o produtor suíço montou uma verdadeira operação de guerra para impedir que Franco lhe engambelasse novamente no filme seguinte que fizeram juntos, JACK THE RIPPER (1976), mais uma adaptação para o cinema dos lendários assassinatos de Jack, O Estripador.


Para evitar que Jess filmasse qualquer outra coisa nos intervalos da produção "oficial", Dietrich forçou-o a transferir as locações de Portugal, onde ele pretendia rodar o filme originalmente, para Zurique, uma das cidades mais luxuosas da Suíça, onde o produtor podia acompanhar os trabalhos de perto. E ainda colocou um dos seus homens de confiança, Edouard A. Stöckli, como gerente de produção, para impedir qualquer picaretagem do espanhol malandrão.

A operação até funcionou no sentido de resultar em um trabalho de mais qualidade. Mas Franco foi picareta de qualquer jeito: ao invés de fazer um filme sobre Jack, O Estripador, como Dietrich queria, ele simplesmente refilmou seu clássico "O Terrível Dr. Orloff" (1961) praticamente cena a cena, com pequeníssimas alterações!


Na vida real, o assassino desconhecido identificado apenas como Jack, O Estripador aterrorizou o bairro pobre de Whitechapel, em Londres, no final do século 19. Ele matou e esquartejou cinco prostitutas entre as madrugadas de 31 de agosto e 9 de novembro de 1888. Outros crimes foram atribuídos a ele, bem como cartas ameaçadoras enviadas a jornais, mas nunca se confirmou nada.

As cinco vítimas "oficiais" foram Mary Ann Nichols, Annie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly, e as sangrentas cenas dos crimes variavam de pescoços cortados e peitos abertos até seios e úteros arrancados e órgãos internos removidos, levando a polícia a acreditar que o Estripador seria alguém com conhecimento do que fazia, tipo um cirurgião ou açougueiro.

Tão misteriosamente quanto surgiu, o misterioso Jack desapareceu sem deixar rastros, e sem que sua identidade fosse descoberta - até hoje existem diversas teorias sobre o caso, que acabam rendendo vasto material para novos livros e documentários do Discovery Channel a cada par de anos.


Quando Jess foi contratado para dirigir o "seu"JACK THE RIPPER, o terrível Estripador já tinha aparecido em mais de 30 filmes, sendo que o primeiro deles foi o clássico do expressionismo alemão "O Gabinete das Figuras de Cera", dirigido por Paul Leni e Leo Birinsky em 1924. De lá para cá, atores tão díspares quanto Anthony Perkins, Udo Kier, Ian Holm e até Tor Johnson (sim, o gigantesco "muso" do Ed Wood!) interpretaram o famoso serial killer londrino em produções bem diversas.

Para a sua adaptação, o diretor contou com um dos atores mais problemáticos da época, uma figura que tinha fama de louco furioso e psicopata NA VIDA REAL, e portanto a pessoa mais apropriada para interpretar Jack, O Estripador: ninguém menos que o alemão Klaus Kinski, o terror dos diretores e produtores, que já havia trabalhado com Franco anteriormente em "Conde Drácula", "Santuário Mortal" e "Venus em Fúria".


Kinski interpreta um médico chamado Denis Orloff (sacou?), um respeitado membro da sociedade e um filantropo durante o dia (ele chega a atender pessoas carentes de graça em seu consultório), mas um monstro à noite, quando sai para as ruas e assume a identidade de Jack, O Estripador para matar e retalhar as pobres garotas de vida fácil que encontra em seu caminho.

À medida que a contagem de cadáveres aumenta, e a polícia começa a sofrer pressão popular para prender o assassino, o Inspetor Anthony Selby (Andreas Mannkopff), melhor investigador da Scotland Yard, é recrutado para trabalhar no caso.


Selby tem uma namorada dançarina, Cynthia (Josephine Chaplin), que, para ajudar o amado, resolve investigar os crimes por conta própria, inclusive vestindo-se de prostituta e circulando sozinha por Whitechappel à noite, tentando atrair o Estripador para uma armadilha.

O problema é que o Dr. Orloff mata prostitutas por causa de um trauma de infância (sua própria mãe trabalhava nessa profissão), e a pobre Cynthia é muito parecida fisicamente com a Sra. Orloff. Ou seja: passa imediatamente para o topo da lista de futuras vítimas de Jack, O Estripador!


O que mais chama a atenção em JACK THE RIPPERé a total falta de comprometimento de Jess com os fatos históricos relacionados ao Estripador real. Apenas o uso do nome "Jack, O Estripador", a ambientação numa falsa Londres e a existência de um assassino de prostitutas lembram os assassinatos acontecidos em 1888; todo o resto é invenção do diretor-roteirista, a partir de seu clássico "O Terrível Dr. Orloff".

A história é praticamente a mesma: Jack tem até uma ajudante (como Orloff tinha Morpho), uma mulher demente chamada Frieda (Nikola Weisse), que é vigia no Jardim Botânico de Londres, para onde o psicopata leva suas vítimas para poder retalhá-las em paz.

A tal ajudante parece ter sido operada e lobotomizada pelo médico louco para virar sua serva leal (ao menos uma cicatriz na cabeça da mulher é mostrada em destaque), o que a aproximaria ainda mais do velho Morpho. E ela se refere às vítimas do assassino como "bonecas", talvez por perceber a satisfação com que seu mestre "brinca" com elas.


E não pára por aí: Jack coloca suas vítimas num barco a remo para transportá-las até o Jardim Botânico pelo Rio Tâmisa (como Orloff e Morpho faziam com suas vítimas em "O Terrível Dr. Orloff, para conduzi-las da cidade até o castelo do cientista), e depois descarta os cadáveres mutilados no próprio rio.

Enquanto em "O Terrível Dr. Orloff" um pescador encontrava o colar de uma das vítimas, que havia caído do barco durante o transporte, aqui um outro pescador encontra a mão decepada de uma das vítimas. Todo o episódio envolvendo o Inspetor Selby e sua namorada que resolve investigar os crimes por conta própria também foram tirados do filme de 1961, em que o mesmo acontecia com o Inspetor Tanner e sua namorada (também bailarina!) Wanda.


Os dois filmes ainda têm cenas inteiras em comum, refilmadas por Jess com ângulos de câmera praticamente idênticos. Uma é aquela em que o investigador reúne todas as potenciais testemunhas - incluindo um vendedor de flores cego! - para elaborar um retrato falado do criminoso, baseado nos pequenos fragmentos de informação que cada uma delas lembra.

A outra é aquela em que o Estripador passa pela carruagem onde Cynthia está e fica olhando assustadoramente para a garota. Em "O Terrível Dr. Orloff", o vilão reconhecia em Wanda a sua filha; aqui, o Estripador acha a moça muito parecida com sua falecida mãe. Em ambos os filmes, a moça grita e seu namorado chega a perseguir um vulto que se afasta, mas que não é o vilão!


A prova de que Franco não tem nenhum compromisso com os fatos históricos é que, além de mudar a quantidade de vítimas e os seus nomes - nada de Mary Ann, Annie, Elizabeth, Catherine ou Mary Jane aqui; as vítimas de Jess se chamam Sally Brown, Jeanny e Marika! -, o espanhol não pensa duas vezes em reescrever a história e, na conclusão, (SPOILERS) mostra a polícia encontrando, identificando e prendendo Jack, O Estripador! Como nada nem perto disso aconteceu na vida real, e o verdadeiro serial killer simplesmente desapareceu sem deixar vestígios, no mínimo Jess podia ter incluído um diálogo do tipo "Vamos manter isso em segredo, nunca saberão quem é o Estripador", para ficar menos fuleiro! (FIM DOS SPOILERS)
 

Quando o produtor Dietrich percebeu que Franco tinha refilmado "O Terrível Dr. Orloff" como JACK THE RIPPER, já era tarde demais. O que deu para fazer foi modificar a dublagem do filme, eliminando qualquer referência ao nome verdadeiro do Estripador como sendo "Dr. Orloff" e transformando-o num médico anônimo (embora "Dr. Dennis Orloff" ainda apareça nas dublagens em alguns idiomas).

Mas a malandragem do diretor espanhol acabou passando em brancas nuvens para os espectadores da época, e mesmo a análise de JACK THE RIPPER no livro "Obsession: The Fims of Jess Franco", que foi publicado em 1993, não faz qualquer menção ao fato de as duas obras serem cara de uma, focinho da outra. Só mais recentemente, com a possibilidade de revisar ambos os filmes primeiro em vídeo e depois em DVD/blu-ray, é que as pessoas começaram a constatar a malandragem.


Se o espectador conseguir descontar a picaretagem (como refilmagem colorida de "O Terrível Dr. Orloff", este novo filme é bem mais fraco que o original) e a falta de fidelidade histórica do roteiro, JACK THE RIPPER poderá ser apreciado como uma das produções mais bem cuidadas que Franco dirigiu naquele período.

Seus famosos excessos com zoom nos filmes da época, e cenas gravadas com câmera no ombro, foram podados por Dietrich e seu gerente de produção linha-dura, e o filme todo foi fotografado em estilo clássico, com becos escuros repletos de nevoeiro, lembrando muito o visual dos velhos filmes da Hammer - parece até que o Conde Drácula vai saltar de algum beco escuro a qualquer momento, ao invés de Jack, O Estripador!


O diretor de fotografia foi Peter Baumgartner, que conseguiu capturar com bastante estilo as ruas escuras e desertas (às vezes MUITO desertas, talvez por falta de figurantes) de Zurique. Graças à inserção de diversas cenas de arquivo (do Big Ben, por exemplo), a cidade suíça até acaba enganando como a Londres da Época Vitoriana.

Mas JACK THE RIPPER vale mesmo como mais uma tour-de-force do doidão Klaus Kinski. Não podia haver ator melhor para representar o serial killer, já que o alemão gela o sangue das suas vítimas só com o olhar (e o diretor faz questão de mostrar os olhos do ator em close o tempo inteiro).


O incrível é que sua performance aqui está até contida, já que Klaus tentou passar a ideia de que Orloff era um homem dividido entre duas personalidades: a de médico bonzinho e a de psicopata descontrolado.

É uma abordagem curiosa, que lembra mais Jekyll e Hyde - as duas metades da mesma pessoa no livro "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson - do que propriamente Jack, O Estripador. Kinski representa o contraste entre estas duas personalidades diferentes sem exageros, mas a verdade é que não tem muita graça ver o ator "interpretando" um louco, pois parece que está apenas sendo ele mesmo!


Com fama de difícil nos bastidores, o alemão não teria dado muito trabalho em JACK THE RIPPER, segundo Franco e o produtor Dietrich. Nem por isso guardou boas recordações da produção, que foi filmada às pressas e com pouco dinheiro."Eu filmei aquela merda em apenas oito dias", resumiu o ator, numa entrevista posterior.

Dietrich confirmou que ele gravou todas as suas cenas em oito dias numa entrevista ao livro "Obsession: The Films of Jess Franco", mas lembrou que as filmagens com ele eram quase sempre noturnas - algo bem desgastante, principalmente porque duravam várias horas seguidas entre o anoitecer e o amanhecer. Mesmo assim, o "difícil" Kinski não teria reclamado - quem sabe por saber que passaria essas oito noites insones rodeado de belas mulheres nuas em quase todas as suas cenas!


Obviamente, um filme sobre Jack, O Estripador precisa envolver certa dose de violência, considerando o estrago que o verdadeiro serial killer inflingia em suas vítimas.  Este é o único aspecto em que JACK THE RIPPER consegue acrescentar algo a "O Terrível Dr. Orloff", pois aqui há sangue aos borbotões em cada ataque do vilão.

O problema é que as mutilações são encenadas com efeitos tosquíssimos, no nível das obras de Herschell Gordon Lewis (tipo "Banquete de Sangue"). Ou seja: "bonecos" absurdamente falsos são desmembrados e cortados em close, com aquele sangue vermelhão dos filmes dos anos 70 jorrando dos ferimentos, em cenas que muitas vezes soam mais engraçadas (até pelo exagero) do que chocantes - repare nos "seios" arrancados nas imagens abaixo.


JACK THE RIPPER também tem uma cena tosquíssima em que o Estripador, nos seus dias "normais" como Dr. Orloff, arranca "a seco" (sem qualquer tipo de anestesia ou mesmo assepsia) a pústula que um paciente pobretão tinha na perna - e que não passa de uma visível bolinha de látex com sangue falso por baixo.

Embora o propósito desta cena seja comprovar que o alter-ego "normal" de Jack (o bom doutor) está gradativamente perdendo o controle, sendo violento até com seus pacientes, Franco podia ter mostrado isso de outra maneira, sem aquele close que deixa a "maquiagem" ainda mais evidente. Detalhe: o doutor depois libera seu paciente sem no mínimo enfaixar o ferimento ou fazer um curativo! Assim fica fácil (e barato) fazer caridade atendendo pacientes pobres de graça!


No fim, o produtor ficou bem contente com o resultado, pois Franco se comportou, não foi tão desleixado quanto de costume durante as filmagens e ainda entregou o nível de putaria que se esperava dele (Dietrich confirmou que só o contratou para o projeto pela sua habilidade em mesclar sexo e violência em filmes rodados em pouco tempo e com pouquíssimo dinheiro).

Todas as vítimas do Estripador aparecem nuas, incluindo a "mocinha" Josephine Chaplin no final. Lina Romay, esposa e musa do diretor, aparece como Marika, uma das vítimas, numa cena que depois seria repetida à exaustão em filmes tipo os da série "Sexta-feira 13": ela tenta fugir de Orloff/Jack por uma floresta escura à noite, naquele que talvez seja o momento mais climático do filme.


Embora frustrante para quem espera um filme minimamente fiel à história verídica de Jack, O Estripador (e ainda mais frustrante quando se percebe que é só uma cópia disfarçada de "O Terrível Dr. Orloff"), JACK THE RIPPER vale a assistida por pelo menos dois motivos: constatar como Jess consegue "fingir" uma produção classuda mesmo com pouquíssimo dinheiro, e conferir o finado Klaus Kinski como astro do espetáculo.

Fora isso, não há nenhum mistério para o espectador desvendar (Kinski É Jack, O Estripador desde o começo, e a investigação realizada pela polícia nunca empolga) e pouquíssimas cenas de suspense ou tensão, já que sempre que o vilão cruza com alguma garota, você sabe que ela será morta violentamente mais cedo ou mais tarde.


Mesmo assim, é no mínimo interessante ver dois mitos (Jess Franco e Klaus Kinski) em ação. Principalmente porque, quase quatro décadas depois, ainda não aprendemos a fazer um filme decente sobre Jack, O Estripador!

Uma rara exceção é o quase desconhecido "À Beira da Loucura" (1989), de Gérard Kikoïne, que traz o eterno Norman Bates, Anthony Perkins, numa reinterpretação da história muito parecida com o que Kinski tentou fazer aqui: um cruzamento entre o serial killer real e "O Médico e o Monstro"! Neste filme, Perkins interpreta um Dr. Jekyll da Londres Vitoriana, que se transforma em Jack, O Estripador ao servir de cobaia para a sua fórmula!

Até vale uma sessão dupla com ambos os filmes, para comparar como dois excelentes atores interpretaram, cada um à sua maneira, o mais famoso (e misterioso) de todos os serial killers...


Trailer de JACK THE RIPPER



*******************************************************
Jack The Ripper (1976, Suíça/Alemanha)
Direção: Jess Franco
Elenco: Klaus Kinski, Josephine Chaplin, Andreas
Mannkopff, Herbert Fux, Lina Romay, Olga Gebhard,
Friedrich Schönfelder e Francine Custer.

BLOODY MOON (1981)

$
0
0

Em 1978, o ainda pouco conhecido John Carpenter dirigiu e co-escreveu um pequeno filme de horror independente chamado "Halloween", que se tornaria um dos grandes ícones do gênero. Mais do que isso, este pequeno filme de horror independente sobre um assassino de babás daria origem a um lucrativo subgênero: os filmes slasher, sobre psicopatas (geralmente) mascarados perseguindo e matando brutalmente grupos de adolescentes com os hormônios em ebulição.

Alguns dos elementos típicos do cinema slasher já haviam aparecido antes em "Banho de Sangue" (1971), de Mario Bava, e "Noite do Terror" (1974), de Bob Clark, só para citar dois exemplos bem famosos. Mas "Halloween" foi bem-sucedido ao juntar todas essas ideias e características antes espalhadas por diferentes obras num único filme, tornando-se a inspiração principal de tudo o que seria feito a partir de então nesse estilo, de "Sexta-feira 13" a "Pânico".


Enquanto isso, no começo dos anos 1980, o espanhol Jess Franco trabalhava praticamente como diretor de aluguel, contratado por produtores de diferentes países europeus para filmar obras baratas de acordo com o que estava fazendo sucesso no momento.

Foi assim que ele acabou assinando filmes de zumbis, canibais e até um slasher, este para uma dupla de produtores alemães (Otto Retzer e Wolf C. Hartwig) que queria garantir sua fatia da gorda bilheteria que obras semelhantes vinham faturando - além de "Halloween", o primeiro "Sexta-feira 13" tinha custado US$ 500 mil e faturado quase 40 milhões de dólares só nos cinemas dos Estados Unidos!


O único slasher dirigido por Franco chama-se "Die Säge des Todes"no original (tradução: "A Serra da Morte", numa referência à grande cena do filme). Mas o filme é mais conhecido pelo título internacional, BLOODY MOON ("Lua Sangrenta", em português). Foi rodado em 1980 e lançado nos cinemas no início de 1981, um dos melhores anos para fãs de filmes slasher, quando saíram belos títulos como "Dia dos Namorados Macabro" e "Chamas da Morte".

Numa divertida entrevista que acompanha o DVD do filme, lançado nos Estados Unidos há alguns anos pelo selo Severin, o diretor espanhol conta que foi ludibriado pelos tais produtores alemães, que lhe prometeram um grande técnico de efeitos especiais de Hollywood (Tom Savini?) para fazer as cenas de morte e uma trilha sonora composta pela banda de rock Pink Floyd (!!!).


Em troca, Jess deveria dirigir um filme com "50 cenas assustadoras" - sim, esse foi o pedido expresso dos produtores. E eu confesso que nunca assisti BLOODY MOON contando as tais cenas assustadoras, mas vamos combinar que é um pedido no mínimo curioso.

Não sei se foi o próprio Franco ou o roteirista "Rayo Casablanca" (pseudônimo do gerente de produção Erich Tomek), mas alguém aí fez a lição de casa direitinho: BLOODY MOONé bem parecido com "Halloween", visualmente e narrativamente, além de pegar algumas ideias daqueles precursores dos filmes slashers que eu citei antes.


E já começa "adaptando" a famosa cena inicial de "Halloween", aquela em que a câmera assume o ponto de vista do assassino para ficar stalkeando sua próxima vítima, imitando até o momento em que ele coloca uma máscara e o espectador passa a "enxergar" pelos buracos dos olhos da dita cuja (o problema é que a câmera só "vê" por um único buraco, como se o assassino fosse caolho!!!).

A diferença é que não estamos em Haddonfield, aquela cidadezinha dos Estados Unidos, mas em Alicante, na Espanha; não na noite de Halloween, mas em meio a uma animada festa (batizada "Festival da Lua"), realizada num resort para turistas. E ao invés de Michael Myers, o assassino aqui é o jovem Miguel (o austríaco Alexander Waechter). Caso você não tenha percebido a referência, "Miguel"é o equivalente em espanhol para Michael!


Ao contrário de sua versão norte-americana em "Halloween", o Miguel de BLOODY MOON não é uma criança precoce prestes a cometer seu primeiro assassinato matando a própria irmã, mas sim um adolescente que tem o rosto deformado, e por isso sofre bullying e é tratado como esquisitão por todos os hóspedes do tal resort.

Durante a festa, ele surrupia uma máscara de Mickey Mouse e a utiliza não apenas para cobrir o rosto deformado, mas também para se passar por um outro rapaz e seduzir uma gostosona. Só que na hora H, quando eles já estão na cama, a máscara é retirada bruscamente e revela o rosto de Miguel. A moça tem um ataque de pânico, começa a gritar e o rapaz se vinga matando-a brutalmente a tesouradas. Detalhe: o assassinato acontece no bangalô de número... adivinha?... 13!!!


A exemplo da sua contraparte norte-americana, Miguel é internado numa instituição para doentes mentais e tratado pelo seu próprio Dr. Loomis, aqui chamado Dr. Domingo Aunous (e, na falta de Donald Pleasence, o próprio Franco interpreta o papel). Cinco anos se passaram e o homicida está para ser libertado sob a guarda da irmã, Manuela (a linda Nadja Gerganoff, em seu único filme).

Mas o próprio médico alerta que Miguel pode não estar "totalmente curado", e por isso não deve ter nenhum contato com qualquer coisa que lhe faça recordar da noite do assassinato. E não é que Manuela, muito atenciosa, leva o irmão de volta para o mesmo resort onde ele cometeu aquele crime brutal, agora transformado numa escola de espanhol para turistas norte-americanas?


Como este é um filme de Jess Franco, a tal escola (chamada International Youth-club Boarding School of Languages) é povoada apenas por garotas gostosas e com fogo no rabo, que passam 0,5% do seu tempo aprendendo espanhol (que deveria ser o objetivo principal da escola) e os 99,5% restantes falando sobre sexo ou fazendo sexo!

A exceção, claro, é Angela (a alemã Olivia Pascal, na sua melhor imitação de Jamie Lee Curtis), uma doce e virginal estudante da tal escola, por quem o ex-psicopata Miguel (será "ex" mesmo?) ficará encantado - ou obcecado, como preferir. À medida que a trama se desenrola, várias colegas e amigas da moça irão desaparecer, mortas brutalmente por um assassino mascarado. Mas quem é ele, e qual a motivação por trás dos crimes?


BLOODY MOONé considerado um dos trabalhos mais impessoais do velho Jess, e percebe-se claramente que ele está dirigindo no piloto automático. Isso não quer dizer que o filme seja ruim, ou mal-feito; pelo contrário, a produção é caprichada, e embora o tal maquiador de efeitos de Hollywood nunca tenha aparecido, o espanhol Juan Ramón Molina (até hoje trabalhando em filmes como "Dagon", de Stuart Gordon, e "Las Brujas de Zugarramurdi", de Álex de la Iglesia) deu conta do recado com criatividade.

Franco nunca foi um diretor "gore", mas aqui ele teve a oportunidade de exercer certo sadismo filmando as mortes mais exageradas e brutais para as suas personagens. Tem de tudo um pouco, incluindo uma garota que é apunhalada pelas costas e a ponta da faca atravessa seu corpo e sai pelo bico do seio (uma cena que Lucio Fulci e Dario Argento certamente lamentaram por não ter filmado antes), e a tal cena mais famosa que está até no pôster, em que outra menina é imbecil o suficiente para deixar um possível amante amarrá-la debaixo de uma gigantesca serra circular - e paga caro pelo erro.


Como escrevi lá em cima, o roteiro de BLOODY MOON não bebe apenas da fonte de "Halloween" e "Sexta-feira 13" (dois filmes ainda bem recentes na época), mas também de precursores do filão. De Mario Bava e seu "Banho de Sangue", por exemplo, Franco e cia. pegaram emprestado o fato de os assassinatos não serem aleatórios, mas sim motivados pela cobiça.

Acontece que a proprietária da área em que fica a escola é uma milionária megera, a Condessa Maria Gonzales (María Rubio), uma óbvia referência à condessa dona da baía em "Banho de Sangue" (ambas inclusive estão em cadeiras-de-rodas)! Como lá no filme do Bava, o desejo de possuir a fortuna da velha é a mola propulsora dos assassinatos também aqui. A Condessa é tia dos irmãos Manuela e Miguel, e adivinhe quem vai herdar tudo se a velha bater as botas?


Já de "Noite do Terror", BLOODY MOON pega o detalhe de o assassino passar o filme inteiro aterrorizando a mocinha Angela com gravações e telefonemas, como fazia o vilão daquele filme - e de vários outros slashers da mesma época, como "Quando um Estranho Chama" (1979) e "A Morte Convida para Dançar" (1980), embora a molecada que nasceu ontem jure que quem inventou tudo isso foram os recentes "Pânico" e "Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado"...

Por fim, uma cena envolvendo a descoberta de um cadáver numa cadeira-de-rodas foi filmada de maneira muito similar à famosíssima cena final do clássico "Psicose", de Alfred Hitchcock, e eu realmente não acredito que seja apenas uma coincidência.


Lina Romay, esposa e musa de Franco, não aparece no filme, mas foi creditada como assistente do diretor (com o pseudônimo "Rosa Almirail"). Já o diretor de fotografia é o espanhol Juan Soler, que se tornaria um colaborador habitual do incansável Jess ao longo da década.

E apesar de a produção ser melhor do que muitas tranqueiras que Franco dirigiu no mesmo período, o resultado final não está livre de muitas gargalhadas involuntárias, geralmente provocadas por burradas do diretor (tipo gritantes erros de continuidade), ou por forçadas de barra do roteiro.

A tal escola de idiomas, por exemplo, é uma comédia. Descontando Angela, que é a "mocinha" (a final girl típica dos slashers), todas as outras garotas que estudam no local têm merda na cabeça e consideram "status social" ter transado com Antonio, o instrutor de tênis - aquelas que não abriram as pernas para ele são inclusive ridicularizadas pelas amigas.


Tem até um momento patético em que uma das moças fica pulando na própria cama e gemendo para fingir que está transando com Antonio, mas é logo desmascarada pelas amigas e vira motivo de chacota! E você pensando que as meninas da série "Sexta-feira 13" eram superficiais, né? Em BLOODY MOON, todas as personagens são tão estúpidas que você até torce pelo assassino, e comemora quando elas têm mortes horríveis (talvez fosse exatamente esse o objetivo do malucão Jess).

Isso sem contar que o lugar em que a história se passa é supostamente uma escola, mas mantém o estilo de resort chique: as garotas residem em bangalôs (e é claro que Angela vai acabar naquele de número 13), se divertem numa discoteca (era o finzinho da Febre Disco, e tem até uma patinadora na pista de dança!) e tomam banho de piscina de topless, tudo no intervalo das aulas e sem qualquer constrangimento, apesar de ter professores homens, um jardineiro demente (interpretado por um dos produtores, Retzer) e o próprio Miguel circulando por lá o tempo inteiro. Aula, que é bom, só quando sobra tempo! Quem mandou a gente estudar em escola pública, onde não tinha dessas putarias?


Como se trata de um filme dirigido por Jess Franco, é claro que existe bastante tensão sexual entre os personagens. E não fica só no oba-oba das meninas em cima do tal professor de tênis: a misteriosa Manuela cumpre um ritual noturno de mostrar os peitos para a lua (?!?), e se relaciona ao mesmo tempo com o escroque diretor da escola, Alvaro (Christoph Moosbrugger), e com o próprio irmão Miguel, com quem mantém uma relação incestuosa!

Curioso é ver Olivia Pascal posando de heroína inocente, virginal e sempre vestida, pois àquela altura ela já era bem conhecida (e o seu corpo nu também, frente e verso) por ter aparecido em vários filmes de erotismo softcore, como "Vanessa" (1977) e "Atrás dos Muros do Convento" (1978). Segundo o diretor, a primeira coisa que Olivia lhe disse ao chegar no set era que tinha se casado e (pelo menos) dessa vez não queria tirar a roupa. Desejo concedido - infelizmente.


Tirando os crimes violentos e as besteiras, o restante de BLOODY MOONé o tradicional feijão-com-arroz do subgênero: Angela passa o filme inteiro ou escapando dos atentados do assassino - que tenta matá-la até com uma gigantesca pedra, obviamente feita de isopor, numa cena de rolar de rir -, ou encontrando os cadáveres das suas amigas, ao mesmo tempo em que tenta, inutilmente, convencer os outros de que há um matador à solta.

Lá atrás, no começo dos anos 1980, muitos desses elementos ainda eram novidade (embora já estivessem aparecendo em diferentes filmes de horror desde a década de 60!). Hoje, entretanto, estão mais do que batidos, e quem for ver BLOODY MOON provavelmente vai adivinhar desde cedo quem vive, quem morre, quem é o assassino e até quando um gato vai pular "do nada" para dar um susto falso na mocinha.


Pelo menos o velho Jess tenta injetar alguns lances diferentes lá e cá, talvez para cumprir aquela cota de "50 sustos" exigida pelos produtores. Um momento bem criativo visualmente é aquele em que Angela sente-se ameaçada pela sombra do que parece ser um homem refletida na porta da frente do seu bangalô; ao abrir a porte, porém, ela constata que é apenas um garotinho, e que a sombra maior projetada através da porta não passava de uma ilusão de ótica (abaixo).

Mais adiante, numa cena que deve arrepiar os protetores de animais até hoje, uma cobra de verdade é morta sem cerimônia apenas pelo choque gratuito: a serpente desce de uma árvore e se aproxima ameaçadoramente de Angela, que está distraída, mas um colega parte para o salvamento cortando a cabeça do bicho com uma enorme tesoura de jardinagem! A questão é que tal cena não acrescenta absolutamente nada ao filme, e poderia facilmente ter sido cortada (a cena, não a cabeça da pobre cobra!).


Como aconteceu com muitos outros filmes slasher do período, o único interesse que BLOODY MOON pode ter hoje é pelas cenas de morte. Menos mal que este é um dos poucos trabalhos do diretor em que o departamento de efeitos especiais estava bem representado: as trucagens criadas por Molina podem até ser baratas, mas o resultado na tela é bem eficiente (e consideravelmente gráfico).

Cenas como a da serra circular decepando a cabeça da garota são mostradas sem nenhuma sutileza, com direito a generosos takes do pescoço da vítima sendo serrado até que a cabeça se solte do corpo e role pelo chão! O filme também é sem-noção o suficiente para mostrar o assassino atropelando e matando uma criança que testemunhou um dos seus crimes - o tipo de cena que você não vai ver nas produções norte-americanas.


Por isso, não surpreende o fato de o slasher de Jess Franco ter entrado na lista dos “Video Nasties” no Reino Unido - aquela temida relação que incluía filmes considerados extremamente violentos para uma época em que se discutia os limites da violência no cinema, e que ficaram proibidos naquela parte do mundo durante décadas (ou então circularam em versões mutiladas).

Vale lembrar que o pobre Franco teve a "distinção" de contar com TRÊS filmes seus na lista dos Video Nasties: este, "Women Behind Bars" e "Manhunter - O Sequestro" - embora os dois últimos sejam mais toscos e engraçados do que propriamente violentos, e certamente não mereciam estar numa relação de filmes banidos ao lado de "Cannibal Holocaust" e "Aniversário Macabro".


Até porque tem coisa muito mais terrível em BLOODY MOON do que as cenas de violência: a trilha sonora assinada por Gerhard Heinz é daquelas que dão vontade de furar os tímpanos!

Na falta do prometido Pink Floyd, apareceu o tal Heinz com uma música inexpressiva e equivocada, repleta de solos de guitarra, e que o próprio Jess assumiu que odiou (na entrevista para o DVD da Severin, ele falou que a trilha é a pior coisa do filme, mas mesmo assim foi obrigado a usar pelos produtores).

Embora não chegue aos pés dos melhores filmes do diretor, principalmente daqueles produzidos na sua fase mais inspirada (entre os anos 60-70), BLOODY MOON pelo menos é bem melhor do que muitos filmes slasher daquele período (a safra de 1980-81). E dá de dez a zero em muita coisa que veio depois, como aquelas assexuadas (e sem sangue) imitações de "Pânico" feitas entre as décadas de 1990 e 2000.


Pois mesmo dirigindo no piloto automático e entregando um trabalho sob encomenda, Jess consegue enfocar seus temas preferidos (sexo e morte) daquele seu jeitinho especial.

O resultado é bem melhor que algumas sequências de "Sexta-feira 13" e "Halloween", os filmes que o espanhol está visivelmente tentando imitar aqui.

E muito mais divertido também. Mesmo quando é involuntariamente.

PS: Cinéfilos metidos a besta certamente vão se contorcer de raiva ao saber que um tal de Pedro Almodovar (sim, "aquele" Pedro Almodovar) homenageou Franco ao colocar diversas cenas deste filme no início do seu "Matador" (1986), quando o protagonista se masturba assistindo a uma série de momentos violentos na TV (tirados de BLOODY MOON e também de "Blood and Black Lace", de Mario Bava). Obrigado ao Carlos Primati pela lembrança!


Trailer de BLOODY MOON



*******************************************************
Die Säge des Todes / Bloody Moon 

(1981, Alemanha/Espanha)
Direção: Jess Franco
Elenco: Olivia Pascal, Christoph Moosbrugger, Nadja

Gerganoff, Alexander Waechter, Jasmin Losensky, 
Corinna Drews, Ann-Beate Engelke e María Rubio.
Viewing all 152 articles
Browse latest View live